Ensino
Repensar a arquitetura — e os espaços — a partir da violência de gênero é tema de TCC
Notícias da Gente
Da esquerda para a direita: Mateus Spindula/Luna Blue; professor orientador Leonardo Name, Magenta Canterlot, professora Camilla Sumi, professor Jonas Mateus Araújo, Desirée Tavares, professora coorientadora Andreia Moassab e Soraya.
A necessidade de repensar a arquitetura e os espaços foi um importante problema levantado pela pesquisa de Mateus Spindula (à esquerda, na foto), graduado em Arquitetura e Urbanismo na UNILA, em dezembro de 2018. Com o título Ligadonas na tomada do cool da madrugada: Drag Queens e a violência de gênero em sanitários de bares e casas noturnas de Foz do Iguaçu, Mateus propõe a reflexão sobre como a arquitetura deve abordar as relações de poder e de gênero na construção dos espaços, analisando as vivências da comunidade de drag queens e drag kings em Foz do Iguaçu.
Com foco na construção social e cultural dos espaços, o estudo realizado pelo discente reforça que o ensino, as pesquisas e a atuação profissional na arquitetura devem ser pautados além das especificidades técnicas tradicionais, necessitando reconhecer que os projetos “moldam os espaços e, também, as relações entre os corpos dentro destes”, diz Mateus.
Para a defesa do trabalho de conclusão de curso, Mateus preparou uma dinâmica especial: foi “montado” como sua personagem, Luna Blue, reforçando os simbolismos presentes em sua pesquisa e também demarcando a crítica sobre o ensino da arquitetura. A apresentação foi uma forma de destacar a mensagem de que “a corporeidade das dissidências, daquela e daquele que questionam a norma heterossexual e a hegemonia masculina, é sempre tida como anormal ou específica e, por isso, insignificante a uma produção acadêmica ou arquitetural voltada à ‘maioria’, ao homogêneo, ao ‘normal’”, afirma. Para ele, apresentar-se como Luna Blue foi também “uma forma de demonstrar que as minorias políticas estão buscando os seus espaços de direito e que não estão calando suas vozes; e sobretudo é um pedido encarecido de que façam coro à luta ante a homogeneização e aniquilação dos nossos corpos — e dos nossos espaços de resistência”.
Ao finalizar este ciclo de formação, Mateus avaliou a importância do curso de Arquitetura e Urbanismo da UNILA. “Mesmo sendo um projeto ainda em seu início, com apenas duas turmas formadas, é preciso perceber o valor de um curso voltado à formação da capacidade crítica de arquitetas e arquitetos, profissionais que compreendam e questionem as relações estabelecidas nos espaços”. Ele ressalta, ainda, o papel das pessoas durante sua formação, agradecendo de maneira especial dois docentes do curso, Andréia Moassab e Leonardo Name, pelo apoio e carinho recebido ao longo da trajetória da pesquisa.
Agora, como bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela UNILA, Mateus pretende ingressar no mercado de trabalho, adquirindo experiência com diferentes atribuições da profissão, mas sem se esquecer da pesquisa. “Pretendo dar continuidade à pesquisa, talvez dentro dos programas de pós-graduação da UNILA. Mas, por enquanto, entendo que é uma necessidade minha ganhar experiência profissional, experimentar novas possibilidades e tentar colocar em prática as questões levantadas durante minha formação”.
Confira a entrevista completa:
Quais foram suas descobertas no decorrer da pesquisa sobre a questão da violência contra drag queens nos bares e casas noturnas de Foz do Iguaçu?
De uma maneira geral, a monografia contribuiu para revelar a profundidade das inter-relações que se estabelecem dentro do espaço dos sanitários, que perpassam os corpos, as normas, as hierarquias, o erótico e a própria dimensão material da Arquitetura.
E quanto à descoberta feita ao longo da pesquisa, acredito que a principal tenha sido o entendimento de que o corpo — e a corporeidade — assume um importante papel ao se tentar estabelecer relações entre o espaço, as questões de gênero e os processos violentos. Outra grande descoberta, imprescindível para a construção do texto, foi a possibilidade de utilizar os métodos móveis para se aproximar dessas relações e, sobretudo, tentar representar as violências que se dão no campo do não dito. Embora de início eu estivesse receoso pela especificidade do recorte escolhido, é preciso ressaltar que a pesquisa acabou por demonstrar a potencialidade da arte transformista e a corporeidade das dissidências enquanto ponto de apoio para se repensar a Arquitetura e a produção do espaço. Por fim, talvez não seja possível colocar como uma “descoberta”, mas sim uma constatação feita ao longo da pesquisa — que nos deixou, como as drags costumam dizer, “chocadas, mas não surpresas”: o espaço está em função da norma heterossexual e da lógica hegemônica patriarcal e, dentro da sua produção e reprodução, molda e coloniza os corpos através da dor, da opressão, do abuso e da humilhação.
Em sua visão, qual o papel da arquitetura em questões como esta? Como a forma de pensar os espaços pode auxiliar nas questões de segurança de populações vítimas de violência?
A Arquitetura tem um papel que, por vezes, mesmo dentro de uma discussão sobre a importância da profissão à construção civil e à sociedade, é deixado de lado. Acredita-se que a profissional ou o profissional da área é imprescindível por supostamente dominarem a projeção do espaço, as normas que garantem o conforto ambiental e outras capacidades técnicas que fazem parte de um “código” indecifrável. Entretanto, enquanto pretensamente a atribuem uma neutralidade técnica — como sendo imparcial, quase asséptica —, a Arquitetura e o Urbanismo, desde o ensino da prática projetiva até as mais diversas atribuições dentro do mercado de trabalho, moldam os espaços e, também, as relações entre os corpos dentro destes.
A profissional e o profissional, enquanto agentes produtores e reprodutores do espaço, projetam a cidade, a rua, o bar e o sanitário em função da norma heterossexual e da lógica hegemônica patriarcal, da subjugação das diferenças, do feminino, dos corpos travestigêneres e, sobretudo, reproduz a segregação e a repressão espacial, a violência psicológica, verbal e física.
O papel da Arquitetura, ou de uma outra Arquitetura, é o de, em vez de rechaçar e segregar, buscar acentuar a convivência entre as diferenças sociais, culturais, históricas, identitárias e sexuais; é o de se colocar enquanto resistência ao processo de homogeneização dos espaços e dos corpos; é, sobretudo, tomar como motivo condutor o retorno do espaço à ambiguidade, ao diverso e ao erótico.
Você enxerga que há espaço no campo da arquitetura para o debate sobre a relação entre gênero, diversidade e espaço? Como anda este debate?
Embora também pequeno, o debate sobre gênero, diversidade e espaço é muito mais expressivo dentro da Geografia. A meu ver, a questão tem uma profunda relação com o que se espera da área. O estudo de gênero, raça e classe, por si só, enfrentou e enfrenta diversas dificuldades para se estabelecer dentro da academia; dentro da Arquitetura — tradicionalmente masculina, heterossexual, branca e elitista — não seria diferente. O debate existe, sim, mas é pequeno, conta com pouquíssimos títulos traduzidos e, em um movimento de resistência, é calcado em uma rede de relações entre docentes, pesquisadoras e pesquisadores e instituições desbravadoras que dão suporte à produção dentro da área. O que me alegra muito é que, tomando como base a característica interdisciplinar das Ciências Sociais Aplicadas, cada vez mais é possível encontrar trabalhos inovadores que buscam desafiar todos as barreiras, que encontram meios de conquistar espaços de divulgação da produção acadêmica e que, pouco a pouco, inspiram outras e outros a também desafiarem o que é tido como intransponível. Mesmo que apenas dentro de um contexto muito pequeno, a forma como encontrei — com a coorientadora e o orientador — de questionar e desafiar o ensino da prática projetiva demonstrou que há, sim, interesse, dentro de instituições como a UNILA, em mudar a forma de se conceber o espaço e o próprio papel da Arquitetura.
Fale um pouco sobre sua proposta de método para a prática e ensinos projetivos com base na etnografia?
A etnografia multilocalizada a partir dos métodos móveis foi uma das muitas “descobertas” feitas ao longo do processo. Partindo dos apontamentos da coorientadora e do orientador, busquei o método de acompanhamento — ou shadowing — apresentado por Paola Jirón, em uma tentativa de perceber as movimentações e as experiências nos espaços da rua, do bar e dos banheiros de uso coletivo. Abraçar a metodologia proposta por Jirón representou, sobretudo, uma aproximação e um melhor embasamento da proposta de uma “investigação” intersubjetiva dos espaços, buscando evidenciar as corporeidades, as práticas móveis e os processos violentos. Portanto, a proposição de uma etnografia multilocalizada, o emprego dos mapas espaço-temporais e a elaboração de sínteses visuais possibilitaram que o método fosse evoluindo ao longo da pesquisa, desdobrando-se e chegando a resultados que questionam, provocam e levam adiante os limites dos levantamentos arquitetônicos tradicionais.
O espaço construído é palco e é produto de uma série de inter-relações e processos que certamente passariam despercebidos em uma abordagem de caráter técnico — e, por conseguinte, homogênea e monótona — das dimensões que compõem este espaço. Desse modo, uma das contribuições, se não a mais importante, que propus junto da coorientadora e do orientador é a mudança de olhar em direção a um protagonismo do corpo — e as relações entre os corpos — dentro de uma análise do espaço social, arquitetural e urbanístico.
Conte um pouco como foi a sua defesa como Luna Blue? O que significou para você realizar a defesa com esta dinâmica inovadora?
De certa forma, o meu trabalho de conclusão de curso está pautado em simbolismos; para mim, terminar esta etapa da graduação fazendo uma crítica ao ensino de arquitetura e deixando uma provocação à prática projetiva foi simbólico e de extrema importância. Defender a monografia estando montado — isso é, caracterizado, maquiado e com a indumentária da personagem Luna Blue —, bem como contar com a participação das drag queens Desirée Tavares, Magenta Canterlot, Soraya e Yala durante a defesa, foi uma das importantes mensagens que busquei transmitir. A corporeidade das dissidências, daquela e daquele que questiona a norma heterossexual e a hegemonia masculina, é sempre tida como anormal ou específica e, por isso, insignificante a uma produção acadêmica ou arquitetural voltada à “maioria”, ao homogêneo, ao “normal”. Para além dessa provocação — que parte de métodos interdisciplinares e da vivência das artistas e dos artistas transformistas de uma cidade tão conservadora como Foz do Iguaçu —, apresentar-se como parte das transgeneridades em meio a uma formalidade tradicional da academia é uma forma de demonstrar que as minorias políticas estão buscando os seus espaços de direito e que não estão calando suas vozes; é, sobretudo, um pedido encarecido de que façam coro à luta ante a homogeneização e aniquilação dos nossos corpos — e dos nossos espaços de resistência.
O que significou para você cursar Arquitetura na UNILA?
Desde que tenho conhecimento, minha vontade era cursar Arquitetura; e, nesta trajetória, o CAU-UNILA teve um papel que foi muito além da formação acadêmica ou da realização de um sonho de infância. Acompanhar o início de um curso tem lá suas dificuldades — seja a falta de professores, recursos e infraestrutura —, mas nos faz questionar os rumos da nossa própria formação. Mesmo sendo um projeto ainda em seu início, com apenas duas turmas formadas, é preciso perceber o valor de um curso voltado à formação da capacidade crítica de arquitetas e arquitetos; profissionais que compreendam e questionem as relações estabelecidas nos espaços. Para além de uma instituição, as pessoas que fazem a UNILA foram os agentes que possibilitaram a compreensão da real função da Arquitetura e Urbanismo no contexto latino-americano, instigando-me a buscar as ferramentas certas para enfrentar e mudar a realidade profundamente desigual, injusta e violenta em que vivemos. Dentre essas pessoas, preciso agradecer de maneira especial à professora Andréia Moassab e ao professor Leo Name, por todo o apoio e carinho, e por me incentivarem e proporcionarem meios de construir esta monografia e de levar adiante este grito que já não cabia no meu peito.
Quais são seus planos agora, como bacharel em Arquitetura?
A jornada pela frente ainda é longa, mas pretendo continuar o caminho que comecei a trilhar durante a graduação. Meu plano é, em um primeiro momento, estabelecer contatos com diferentes atribuições da Arquitetura e Urbanismo, continuar minhas experimentações nos processos de criação, nas poéticas visuais, na cenografia, nas produções cênicas e, quem sabe, conseguir reverberar esta provocação acerca dos espaços e a corporeidade. O processo de elaboração da monografia certamente me fez questionar muito os caminhos que pretendia seguir, mas também me fez descobrir potencialidades dentro daquilo que já vinha produzindo e experimentando antes e durante a graduação. Pretendo dar continuidade à pesquisa, talvez dentro dos programas de pós-graduação da UNILA, mas por enquanto entendo que é uma necessidade minha ganhar experiência profissional, experimentar novas possibilidades e tentar colocar em prática as questões levantadas durante minha formação.
Acesse o trabalho na íntegra no Repositório Institucional.