Apresentação
A área de concentração do Programa de Pós-Graduação em História da UNILA, Histórias, Sociedades e Culturas no Sul Global, conecta-se com as tendências recentes da historiografia voltadas à investigação de circulações culturais, identidades, experiências sociais e relações de poder na América Latina e Caribe, África e Ásia. Dessa maneira, visa promover pesquisas históricas concentradas em dois períodos temporais específicos: o estudo da chamada primeira modernidade, especialmente em processos globais conectados pelo colonialismo, expansão ultramarina e agências no mundo atlântico (séculos XV a XVIII); e os contextos sociopolíticos e culturais vinculados às experiências de modernidade (sobretudo nos séculos XIX e XX), bem como suas reverberações no tempo presente. Assim, propõe-se discutir, em diálogo com os aportes teórico-metodológicos da história global, histórias transnacionais e histórias conectadas, as experiências sociais e culturais constitutivas dos espaços geopolíticos no Sul Global, com atenção especial à historicidade das "epistemologias do Sul Global".
Em termos teórico-metodológicos e historiográficos, as abordagens do Sul Global promovidas pelo PPGHIS/UNILA articulam-se aos campos da história global, das histórias transnacionais e histórias conectadas. Trata-se de uma perspectiva abrangente voltada a uma variedade de desafios condizente com a realidade global atual, já entendida por alguns autores como “pós-nacional”. A origem dessa perspectiva situa-se precisamente em tentativas de superar a lógica dos Estados nacionais, tão marcante na historiografia e na política desde o século XIX. Desde a década de 1990, historiadores de diferentes áreas e temáticas passaram a pensar seus trabalhos sob uma ótica transnacional ou global, focada especialmente no fluxo, movimento ou alcance de pessoas, ideias, bens, instituições e linguagens além de fronteiras nacionais (ou de outras fronteiras politicamente definidas, como as de blocos – como o Mercosul, a União Europeia ou a União Africana). Assim, a história global nasceu de uma convicção de que as ferramentas que os historiadores vinham utilizando para analisar o passado já não eram mais suficientes. Além disso, convém frisar que globalização tem colocado um desafio fundamental para as ciências sociais e para as narrativas dominantes de mudança social, em especial a superação dos paradigmas nacionalistas e eurocêntricos no campo da História.
A abordagem transnacional nasceu de preocupações oriundas da historiografia sobre a América Latina (WEINSTEIN, 2013; PRADO, 2011-2012), configurando-se numa perspectiva que muito tem influenciado os estudos históricos globalmente nos últimos anos, estimulando revisões de currículos e abordagens em vários centros de pesquisa historiográfica. Adicionalmente, a abordagem da história transnacional visa não apenas à crítica dos paradigmas historiográficos nacionalistas, mas também de uma perspectiva de globalização equivalente a uma “ocidentalização” do mundo, fundada em versões de teorias da modernização. Busca, dessa forma, pensar a interação histórica entre diferentes culturas e seu impacto na formação dos variados objetos estudados pelos historiadores. Partindo de uma reflexão fundada na experiência de nossa atual realidade global, os estudos transnacionais têm feito os historiadores repensarem e reconfigurarem unidades históricas do passado. Em decorrência disso, novas configurações histórico-espaciais têm surgido, como o Mundo Atlântico, por exemplo, para pensar as relações entre América, África e Europa desde a primeira modernidade. De acordo com essa abordagem, propomos pensar a história de América Latina, Caribe, África e Ásia dentro de uma perspectiva teórico-metodológica voltada para a história do Sul Global.
Por ser uma nova perspectiva, e não um novo objeto proposto à história (PORTES, 2004, p. 175), os estudos transnacionais fornecem instrumentos teórico-metodológicos e conceituais relevantes para pesquisas sobre migrações e diásporas; história social da cultura e do trabalho; trajetórias e biografias; história das instituições e das relações de poder; história da historiografia; história da arte; história dos conceitos (e/ou das ideias); fenômenos como imperialismo e colonialismo; e processos históricos de construção de identidades (como gênero, étnico-raciais, classe) e sociabilidades. Como problemática, estimula o uso de um conjunto variado de tipologias de fontes, desde documentos escritos, fontes imagéticas, fontes orais e historiografia.
Tal abordagem permite uma reflexão crítica sobre as narrativas históricas nacionais (e/ou nacionalistas) e regionais, convergindo com perspectivas como a história cultural e a história social, as teorias pós-coloniais e decoloniais, sobretudo a partir do aporte do pós-estruturalismo, bem como com os estudos subalternos. Propõe uma revisão apoiada na noção de agência, ou protagonismo, deixando de ver a América Latina, Caribe, África e Ásia como simples espaços de reação a imposições culturais externas (europeias ou norte-americanas), ou como espaços de modernidades “particulares” confrontadas com uma modernidade “universal” que lhes é externa. A perspectiva transnacional rejeita, portanto, modelos de difusão, preferindo ideias como “circulação cultural”. Desse modo, permite uma revisão da maneira de pensar e estudar a história da(s) modernidade(s) no Sul Global, visando alcançar uma compreensão mais abrangente das interações e conexões que moldaram o mundo moderno e contemporâneo. Essas conexões definem um recorte temporal que abrange as modernidades, no plural: da primeira modernidade à modernidade tardia, atentando para a dinâmica de continuidades e transformações e para a interação de distintas temporalidades no Sul Global.
A perspectiva transnacional pode ser trabalhada por meio de estudos comparativos, mas não se limita exclusivamente à história comparada, pois enfatiza a integração e o intercâmbio na constituição dos fenômenos históricos estudados. Ela questiona o modelo comparativo tradicional que pressupõe unidades nacionais isoladas e visa à afirmação da excepcionalidade nacional por meio da comparação com outras nações, também consideradas em suas unicidades. Dessa forma, a perspectiva transnacional está aberta ao diálogo com tendências historiográficas recentes e inovadoras, como as histórias conectadas, promovendo investigações sobre situações de contato entre diferentes sociedades e culturas para além das fronteiras nacionais. As ferramentas teórico-metodológicas fornecidas pelas histórias conectadas são particularmente importantes ao se considerar a possibilidade de complexificar as experiências sociais, culturais e políticas do passado. Elas buscam religar experiências diversas e articular múltiplas escalas de observação de fenômenos históricos, permitindo uma compreensão mais profunda e integrada das interações e conexões que moldaram o mundo moderno e contemporâneo. Essa abordagem possibilita promover pesquisas comprometidas com análises mais complexificadas das dinâmicas históricas, superando as limitações das perspectivas nacionais isoladas e oferecendo uma visão mais abrangente e interconectada das experiências históricas no Sul Global.
Convém frisar que a ênfase no Sul Global representa um esforço do PPGHIS/UNILA em pensar os diversos desafios da região a partir de uma perspectiva que dialoga com autores, conceitos e elementos preocupados em problematizar o Sul Global não apenas em uma perspectiva econômica, política ou social, mas também em suas dimensões culturais. O conceito de "Sul Global," que ganhou expressividade a partir de vertentes críticas como os estudos pós-coloniais, os estudos decoloniais e subalternos, marca uma mudança do foco no desenvolvimento ou nas diferenças culturais para uma ênfase nas relações de poder geopolítico. Esse conceito compreende que, para além de um espaço geográfico, envolve a capacidade de projetar identidades múltiplas e reivindicar posições geopolíticas complexas no “sistema mundo”. Reforça ainda a importância de investigar as “epistemologias do Sul”, considerando-se que tais conhecimentos não são inferiorizados em relação àqueles produzidos pelos países ricos do mundo ocidental globalizado, mas se apresentam como alternativas às histórias eurocentradas.
Essa abordagem promove uma compreensão mais abrangente e inclusiva das diversas formas de conhecimento e das experiências históricas que emergem das regiões consideradas parte do Sul Global. Ao reconhecer e valorizar essas epistemologias, é possível desafiar a hegemonia das narrativas eurocentradas e oferecer uma visão mais diversificada e equitativa da história e das relações internacionais. Desse modo, pode contribuir para a construção de uma historiografia que valoriza a pluralidade e a diversidade dos contextos culturais, sociais e políticos ao redor do mundo, promovendo um entendimento mais complexo das dinâmicas globais, transnacionais, conectadas.
O PPPGHIS/UNILA visa promover pesquisas destinadas a reavaliar criticamente as narrativas historiográficas sobre a América Latina, Caribe, África e Ásia. No que se refere especificamente à história da região da Tríplice Fronteira, o PPGHIS/UNILA propõe pesquisas que incluam uma miríade de novos agentes e objetos do processo histórico de formação cultural da região. Este aparato conceitual, aliado à experiência dos professores do programa e à prática de pesquisa ali desenvolvida, tem como objetivo tornar os egressos do PPGHIS/UNILA pesquisadores e professores de aptos a pensarem a História diante dos problemas de seu tempo e dos novos desafios colocados à disciplina nas últimas décadas. Esses desafios incluem a revisão dos paradigmas nacionalistas, eurocêntricos e modernizadores, e a problematização de uma série de questões entendidas como transnacionais, como os direitos humanos e as questões identitárias. Nesse sentido, é a partir do estudo aprofundado e sistemático da História do Sul Global, de um ponto de vista transnacional, que o PPGHIS/UNILA visa contribuir para o diálogo interdisciplinar realizado pela universidade, bem como configurar-se como uma contribuição original à Pós-Graduação em História no país por meio da produção de pesquisas inovadoras.
Tal perspectiva adequa-se, e mesmo pode ser plenamente desenvolvida, a partir da experiência do curso de graduação em História – América Latina e História - Licenciatura da UNILA, cujos currículos foram pensados sob a chave de uma revisão e crítica da narrativa historiográfica eurocêntrica que orientou o desenvolvimento da disciplina da História no Brasil. Fundamentalmente, essa abordagem permite enriquecer o estudo do contexto local e regional em que se insere a UNILA, pois a riqueza e diversidade cultural da região do Oeste do Paraná, e em particular da Tríplice Fronteira, envolvem diásporas, trocas culturais e intercâmbios transfronteiriços. Envolvem contribuições de populações migrantes oriundas do Leste da Ásia, do Oriente Médio, do Caribe, de outros países da América Latina não situados na Tríplice Fronteira e, mais recentemente, da América Central. Essa perspectiva volta-se também à produção de pesquisas que abrangem as populações indígenas (a exemplo dos povos Guaranis) e afrodescendentes na região, com o objetivo de fornecer interpretações mais plurais sobre o passado.