Questões de gênero estão em debate no ensino, pesquisa e extensão

No Brasil, a taxa de feminicídios é de 4,8 para 100 mil mulheres – a quinta maior do mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). O Mapa da Violência (2015) revela que, de 2003 a 2013, o número de assassinatos de mulheres negras cresceu 54%, passando de 1.864 para 2.875. No mesmo período, o índice de assassinatos de mulheres brancas caiu 9,8%, saindo de 1.747, em 2003, para 1.576, em 2013. Um cenário que aponta para uma violência contra a mulher demarcada pelo patriarcalismo e, ainda, articulada a marcadores sociais como raça, etnia e classe social.

“A mulher negra é duplamente atingida - tanto pelo machismo quanto pelo racismo. Dos vários índices de violência contra jovens, as mulheres negras são as mais afetadas. São violências institucionais invisibilizadas, difíceis de combater. Muitas vezes são construídas pelo próprio Estado, das quais a população nem sempre consegue perceber que está sendo alvo”, coloca a professora de Antropologia e pró-reitora de Extensão da UNILA, Ângela Maria de Souza. A baixa representatividade de mulheres e pessoas LGBTs – sobretudo negras –, nas instâncias de poder, também é um dos entraves para avançar-se nessas questões.

“É importante que os movimentos sociais participem da vida pública e não a neguem porque é violenta. Se a gente consegue dialogar e inserir-se em instâncias de poder – partidária, universitária ou no executivo, por exemplo –, podemos pressionar, fiscalizar e garantir que essas instâncias sejam mais abertas à diversidade”, aponta a docente de Antropologia da UNILA Lorena Tavares. São embates e tentativas de diálogo diante de governos atualmente marcados por intolerância a grupos específicos, dentro de uma escala mais global.

“Passamos por um momento político nacional e internacional em que as conquistas sociais, políticas e sobretudo comportamentais estão sendo colocadas em xeque, haja vista governos cada vez mais conservadores em relação às conquistas sociais – das mulheres, dos negros, dos índios e de grupos que consideramos da diversidade”, afirma a docente do curso de História da UNILA Cleusa Gomes da Silva. Ela destaca a importância da discussão sobre gênero no âmbito da educação, uma vez que está relacionada a situações contínuas sofridas pelas mulheres.

“Tivemos a aprovação da lei do feminicídio no Brasil, mas se não tem o entorno – escola, universidade e sociedade civil – preocupando-se com a temática, fica difícil diminuir os índices de violência”, assinala Cleusa Gomes, também vice-diretora do Instituto Latino-Americano de Artes, Cultura e História (ILAACH), que iniciou, na semana de recepção aos estudantes deste ano, uma campanha permanente de respeito à diversidade na UNILA. As ações envolvem debates, sensibilização e rodas de conversa com a comunidade acadêmica e grupos da comunidade de Foz do Iguaçu.

Debate nas escolas

É com foco no debate em escolas, com educadores e estudantes do ensino público, que alguns projetos de pesquisa e extensão da UNILA têm caminhado. Um dos processos de inserção na rede pública de ensino aconteceu a partir de uma demanda da comunidade, para a contribuição na formação de professores em relação à implementação da lei que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira.

Dentro desse projeto, professoras expuseram as dificuldades de lidar com o tema em sala de aula e relataram sua autodescoberta como mulheres negras, uma vez que se negavam como tal. “Descobrir-se é muito importante. É um processo de tomada de consciência de sua condição. O conteúdo da escola não está descolado das experiências pessoais dessas professoras, que trabalham no dia a dia da escola e estão se repensando como mulheres negras”, relata a docente Ângela de Souza, que trabalhou no projeto.

Nesse contexto, outra ação com a comunidade é Gênero e Diversidade na Escola, projeto de extensão que busca contribuir para o enfrentamento da violência sexista e étnico-racial e de fobias em relação ao universo LGBT, no âmbito escolar. “Esse projeto tem como objetivo principal oferecer aos professores da rede pública de educação – e demais profissionais que atuem na área – conhecimentos acerca da promoção do respeito e da valorização da diversidade étnico-racial, de orientação sexual e de identidade de gênero”, contextualiza a coordenadora do projeto e professora de Antropologia da UNILA, Lorena Tavares.

Além de atuar no âmbito extensionista, o projeto irá ofertar vagas a professores e profissionais da educação em um curso de especialização, previsto para o segundo semestre. O curso tem como objetivo fornecer elementos para desconstruir preconceitos e romper o ciclo de sua reprodução no cotidiano das relações – inclusive nas práticas pedagógicas. Questões de gênero e diversidade também estarão presentes no curso de especialização em Direitos Humanos, previsto para este ano.

Gênero, raça e classe

 A intersecção das questões de gênero, de raça e de classe direciona, ainda, o projeto de extensão da UNILA intitulado Trabalho doméstico tem valor!. Em fase inicial, ele parte de uma demanda central de mulheres na luta pela dignidade dessa atividade laboral. “Ao ingressarem no trabalho doméstico, as mulheres buscam um trabalho digno, mas durante a sua trajetória profissional, elas passam por uma série de avisos de que essa atividade não é digna. A ideia é ir às comunidades, proporcionar espaço de sensibilização e promover encontros entre mulheres trabalhadoras domésticas, como um coletivo de empoderamento, em que elas são protagonistas. E que desses encontros saiam também propostas coletivas”, contextualiza a coordenadora do projeto, Élen Schneider, professora do curso de Ciência Política e Sociologia da UNILA. A iniciativa nasce de uma trajetória de pesquisas da docente, em diálogo com sindicatos de empregadas domésticas, além de investigações que abordam os temas justiça e feminismo.

Em suas investigações, a docente traz uma discussão a partir de epistemologias feministas, acerca da divisão sexual do trabalho, que delega às mulheres o trabalho doméstico, de reprodução e cuidado gratuito, dentro de um contexto capitalista. “A esfera pública é mais valorizada que a esfera privada, com uma separação, que não existe, entre o pessoal e o político, e um não reconhecimento da importância do trabalho doméstico remunerado e também não remunerado, com mulheres em duplas jornadas de trabalho”, salienta Élen, que traz, em suas pesquisas, um olhar crítico sobre uma justiça patriarcal e um acesso negado às mulheres na esfera pública.

Nessa linha de trabalho, a pesquisa com o tema Mulheres negras na fronteira, coordenada pela professora Ângela Maria de Souza, percorre a interseccionalidade de raça, classe e gênero com recorte na arte e na educação. A docente enfatiza outras perspectivas sobre a discussão da diáspora, constituída para além das fronteiras nacionais e presente no cotidiano – e não em um processo distante. “É um movimento permanente, justamente pela negação da cidadania. São mulheres em movimento – que é racializado – pela sua condição de serem negras, cada uma na sua especificidade, na arte, na educação ou no trabalho braçal. São elas as que mais precisam movimentar-se nesse sentido, não só geograficamente, mas politicamente”, explica Ângela.

Grupos de pesquisa

Os grupos de pesquisa na UNILA são caminhos para o desenvolvimento de atividades de debate e troca de saberes sobre esses temas, a exemplo do Núcleo de Estudos Afro-Latino-Americanos (NEALA), formado em 2013 e recentemente incluído na Rede de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB); e o Grupo de Pesquisa sobre Gênero e Poder na América Latina e Caribe (GEPALC), iniciado em 2015, com enfoques a partir de relações sociopolíticas, culturais e também de construção das subjetividades dos sujeitos. Uma das investigações realizadas na UNILA, nessa perspectiva, é da professora Lorena Tavares, integrante do GEPALC. Ela coordena a pesquisa Reconhecimento, subjetividade e emoções: a construção da identidade sexual e de gênero de LGBTs de Foz do Iguaçu. O projeto parte do reconhecimento social para debater a “construção de identidades sexuais e de gênero e, ainda, os dilemas e conflitos que esses grupos enfrentam na construção de sua subjetividade, dos seus afetos e emoções”, descreve a docente.

“Com a chegada dos colonizadores, o patriarcalismo tomou uma vertente muito mais violenta, porque havia toda uma tentativa de exterminar ou subordinar determinados grupos em relação ao olhar do europeu – mulheres, negros, índios e toda essa diversidade”

Epistemologias do Sul, grupo cadastrado no CNPq com linhas de investigação nessas temáticas, trabalha, por sua vez, a partir de questionamentos de desigualdades e hierarquias – raciais, de gênero, epistêmicas, econômicas, entre outras – que atravessam a relação Norte/Sul, em contexto do capitalismo global. Uma das linhas de pesquisa enfatiza a discussão de como a questão de gênero está intrinsecamente ligada à colonialidade. “Com a chegada dos colonizadores, o patriarcalismo tomou uma vertente muito mais violenta, porque havia toda uma tentativa de exterminar ou subordinar determinados grupos em relação ao olhar do europeu – mulheres, negros, índios e toda essa diversidade”, assinala Cleusa Gomes. Ela ministra a disciplina História e Gênero na América Latina, cujos estudantes também atuam na comunidade para a construção de projetos, nos quais o tema gênero está na centralidade da discussão.

Estudos

As disciplinas que debatem questões de gênero têm contribuído para despertar o interesse de estudantes, na produção científica com essa temática. Diversos trabalhos de conclusão de curso (TCCs) estão sendo produzidos com discussões no âmbito latino-americano e, outros, mais especificamente no contexto de Foz do Iguaçu. Um dos projetos em andamento é o da estudante de Antropologia Ângela Ferreira, que estuda o tema da identidade transexual e travesti no município. Sua proposta é realizar um registro etnofotográfico e documental, contando a história de vida de uma pessoa no contexto LGBT.

Em suas pesquisas, em Foz do Iguaçu, um dos pontos evidentes é que a questão da identidade transexual e travesti sofre variações conforme faixas etárias e classes sociais. “Em alguns casos, os LGBTs de 14 a 18 anos que frequentam escolas públicas e particulares têm experimentado uma relação no âmbito privado, que denota uma aceitação maior por parte dos familiares, se comparado a alguns anos atrás. No entanto, eles continuam sendo assediados moralmente na esfera pública, inclusive sofrendo com o preconceito dentro das escolas, não só por parte dos colegas, mas também por parte do corpo docente e administrativo, devido à falta de conhecimento e de tato”, relata. As investigações apontam, ainda, que os LGBTs acima de 18 anos enfrentam dificuldades principalmente se travestidos."Eles se locomovem num espaço restrito e em horários determinados", aponta a acadêmica.

A mestranda da UNILA Cynthia Luna Montalbetti graduou-se no curso de Ciência Política e Sociologia com um trabalho de conclusão de curso com enfoque nas questões de gênero: Cuerpas gordas, padrão estético, gordofobia, movimento feminista e ativismo gordo no Brasil. “A gordofobia e um certo padrão estético são formas veladas de violência. São processos discriminatórios naturalizados na sociedade - até dentro do próprio feminismo”, aponta a estudante. Essa questão, pontua a discente, está associada ao contexto de um sistema capitalista que lucra com estereótipos e padrões do corpo, a exemplo da indústria farmacêutica, de produtos alimentícios e das academias. “A partir do momento em que a mulher passa a lutar pelos seus direitos, começam a existir outras formas de dominação, de forma velada. E qual a melhor forma senão através do corpo?”, questiona.

• Outras pesquisas de estudantes da UNILA, realizadas em trabalhos de conclusão de curso, especialização e mestrado, podem ser acessadas pelo repositório institucional da Universidade, com possibilidade de busca por palavras-chave: https://dspace.unila.edu.br/

• Conheça também o projeto de extensão Grupo de apoio sobre gestação, parto e aleitamento materno na rede de atenção básica de Foz do Iguaçu, coordenado pela professora Ana Paula Fonseca, do curso de Saúde Coletiva e Medicina da UNILA. Saiba mais clicando aqui.