Vida Universitária
Lutas, conquistas e desafios das Mulheres na Ciência
De 1907 a 1910, a física austríaca Lise Meitner realizou suas primeiras experiências sobre radiação no porão do Instituto de Química de Berlim. Doutora em Física Nuclear, ela e outras mulheres eram proibidas de acessar os laboratórios, salas de estudos e auditórios do Instituto, espaços que eram reservados apenas para pesquisadores homens. As pesquisas iniciadas no laboratório improvisado no porão foram fundamentais para que, alguns anos depois, Lise pudesse decifrar a "experiência do século”, explicando que o núcleo do átomo podia ser seccionado e liberar enormes quantidades de energia. Mas foi seu colega Otto Hahn – que estudava no andar superior – que recebeu o Prêmio Nobel de Química pela experiência de fissão que ela iniciara e explicara.
Mais de cem anos se passaram e, hoje, graças à luta de movimentos feministas e ao esforço de cientistas como Lise Meitner, as mulheres estão nos laboratórios, nas salas de aula e nas bibliotecas de grande parte das universidades e centros de pesquisa. No Brasil, desde a primeira década do século 21, elas são maioria em todos os níveis de ensino e também entre os bolsistas de iniciação científica, mestrado e pós-doutorado do CNPq (ver quadros). Porém, conforme a carreira avança, as disparidades começam a aparecer. Mulheres são minoria quando se trata dos critérios de institucionalização como pesquisadoras, chegando a 46% dos docentes universitários (na UNILA é 43%), 42% dos líderes de grupos de pesquisa e apenas 25% dos bolsistas Sênior de Produtividade em Pesquisa (PQ), a mais alta categoria de apoio do CNPq a cientistas do país.
As causas para a presença ainda pequena no topo da carreira científica no Brasil são as mesmas que impedem o crescimento profissional das mulheres em outras áreas. “Seguramente, esta disparidade é decorrente do papel que a mulher ainda precisa assumir em nossa sociedade hodierna: o papel de guardiã e cuidadora do âmbito privado. É a mulher que fica responsável, muitas vezes integralmente, pelos afazeres e cuidados destinados à manutenção laboral e mesmo afetiva da esfera doméstica. Isso significa que, se a mulher desejar ter uma carreira profissional, precisará arranjar tempo e disposição extra para isso”, explica a professora do curso de Filosofia da UNILA Idete Teles dos Santos. Essa cobrança e expectativa desiguais das tarefas domésticas entre homens e mulheres, somadas às exigências de alta produtividade e competitividade do campo científico, tornam-se um desafio para as mulheres pesquisadoras. “Seria fundamental acabar com essa exigência da mulher polivalente e, ao mesmo tempo, oferecer condições iguais à mulher para o mundo público, do trabalho e da ciência”, completa a docente.
O esforço para tornar os ambientes de pesquisa mais igualitários não objetiva somente a melhora da situação da mulher. Já há pesquisas que mostram, por exemplo, que as empresas que têm um ambiente mais igualitário, tanto em termos de gênero quanto em termos étnicos, têm melhores resultados em termos de inovação e lucro. Para Idete Teles dos Santos, no âmbito da pesquisa científica não é diferente. “Pessoas diferentes têm saberes, perspectivas, universos, mundos diferentes; e a interação entre essas pessoas promove o confronto de ideias, promove a mudança, o novo. Creio que a UNILA é um ótimo exemplo. Em sala de aula tenho testemunhado quão produtivo é ter estudantes de variados cursos de formação e variadas nacionalidades, etnias, gêneros. Nessa perspectiva, diversidade de gênero certamente oferece muito mais às ciências, às pesquisas”, salienta a professora, que ministra a disciplina de Introdução ao Pensamento Científico.
Professora da UNILA é pioneira em estudos sobre carbonatação do concreto no Brasil
Quando ingressou no curso de Engenharia Civil na Unioeste de Cascavel, Edna Possan não sabia que estava entrando em uma área considerada “majoritariamente masculina”. Em sua turma, eram 9 estudantes mulheres e 31 homens. Foi na iniciação científica que Edna começou as primeiras pesquisas sobre materiais, área em que atua até hoje. “A iniciação científica despertou meu gosto pela ciência e pela docência. Descobri que eu poderia ser engenheira, professora e pesquisadora. Lembro que, na época, achei superempolgante poder misturar coisas e analisar o resultado, o que na ciência chamamos de relação causa e efeito”, lembra.
Foi “misturando coisas e analisando os resultados” que Edna se tornou a primeira pesquisadora brasileira a estudar a carbonatação do concreto como medida compensatória na engenharia civil. Edna elaborou em sua tese de doutorado um modelo matemático capaz de estimar a carbonatação de estruturas de concreto. O objetivo da fórmula era calcular a durabilidade e a vida útil das estruturas. Mas, em 2009, ela percebeu que sua pesquisa tinha potencial para contribuir com os primeiros estudos internacionais sobre compensação de emissões de CO2, que estavam surgindo na época.
Desde então, a docente desenvolve e coordena várias pesquisas que avaliam como acontece o sequestro de CO2, alterando os materiais utilizados e os ambientes onde estão inseridos. O objetivo principal é buscar alternativas para uma das atividades humanas mais poluentes do mundo: a indústria cimenteira. Calcula-se que, a cada tonelada de cimento produzido, 650 kg de dióxido de carbono (CO2) – o principal gás responsável pelo aquecimento global – seja liberado na atmosfera. Isso faz com que cerca de 7% das emissões mundiais de CO2 venham da produção de cimento, de acordo com um levantamento do Conselho Mundial de Negócios para o Desenvolvimento Sustentável (WBCSD, na sigla em inglês).
Nos laboratórios da UNILA, sob a orientação de Edna, estudantes de graduação e pós-graduação realizam diversos ensaios para verificar em quais condições o concreto tem maior capacidade de sequestro de carbono. “Em tempos em que se fala tanto em aquecimento global, faz parte da responsabilidade social da Engenharia Civil repensar o modo como fazemos nossas obras e trabalhar numa abordagem de engenharia que leve em consideração a captura de CO2, a sustentabilidade e, consequentemente, a qualidade de vida das populações”, explica.
Mãe da Valentina (2 anos), Edna se preocupa com o pouco incentivo que mulheres têm para atuar nas áreas das ciências exatas e técnicas, como engenharia, computação ou física. Para ela, a mudança de mentalidade começa na base. "Eu só passei no vestibular graças ao apoio e incentivo de meus professores do colégio público, que me ajudavam extraclasse com correção de exercícios e estudo de conteúdos que não dava tempo de ver em sala de aula. Então, vejo que esse apoio tem que começar pela família e pela escola, para mostrar que não existe gênero definido nas ciências e que todas nós podemos ter sucesso nessas áreas".
Pesquisa para resgatar a memória de mulheres esquecidas
Fernanda Sobral Rocha viu na pesquisa uma forma de compreender sua própria trajetória. Em 1998, sua família foi contemplada com uma casa no Cidade Nova, conjunto habitacional que recebeu famílias removidas de outras comunidades ou que estavam à espera de uma casa própria. Nos anos iniciais da construção do bairro, ela acompanhou os moradores sofrendo com várias problemáticas, desde a falta de estruturas públicas até o isolamento do restante da cidade. “As consequências da remoção sem planejamento foram visíveis já em seu primeiro ano, quando os moradores enfrentaram a perda de vínculo de vizinhança, a ausência de serviços públicos, a distância e a violência. Todas essas situações provocaram o retorno de várias famílias para ocupações”, conta.
Ao ingressar no mestrado em Políticas Públicas e Desenvolvimento, em 2017, Fernanda decidiu estudar mais profundamente as consequências das remoções promovidas no bairro Cidade Nova, mas do ponto de vista das mulheres que viveram essa história. Para sua dissertação, ela entrevistou oito mulheres chefes de família do bairro. O objetivo foi resgatar a memória das mulheres que vivenciaram os primeiros anos do bairro Cidade Nova e as consequências das políticas habitacionais implantadas em Foz do Iguaçu. Mas, além disso, a mestranda busca com o trabalho fazer uma reflexão sobre a participação das mulheres no ciclo das políticas públicas.
“É impossível construir uma sociedade democrática sem a participação política da mulher no planejamento e na implementação de políticas. Para que uma política pública seja pensada de forma igualitária, é preciso que as mulheres também estejam presentes na luta por seus direitos de cidadania, de forma a conquistar seu espaço”, explica Fernanda, que também é servidora técnico-administrativa na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UNILA. Para ela, a presença das mulheres em todos os espaços, incluindo os espaços de poder e de decisão, é fundamental para garantir direitos que, até pouco tempo, não eram garantidos. “Não há dúvida de que as mulheres conquistaram espaços que até pouco tempo eram destinados somente para homens. Porém, ainda temos muito que avançar. Ainda encontramos dificuldade para a plena cidadania das mulheres devido à permanência da violência contra elas praticada, o que causa desigualdade e exclusão social”, destaca.
“Respiramos, acreditamos e seguimos”
O exemplo para a farmacêutica Joana Borghetti ingressar no mestrado veio de casa. Quando era adolescente, Joana viu a mãe concluir o mestrado em Arquitetura. A ideia era emendar o mestrado logo depois da graduação na própria UFRGS, onde concluiu Farmácia em 2009. Mas Joana mudou de cidade, teve um filho, abriu uma empresa e o plano de se dedicar à pesquisa ficou para depois. “O mestrado nunca deixou de ser um objetivo. Fiz alguns processos seletivos para programas da região, porém eles não tinham nenhuma relação com minha atuação profissional atual, que é a farmácia estética. A multidisciplinaridade do quadro docente do programa de Biociências da UNILA despertou a minha curiosidade e, então, encontrei uma linha de pesquisa totalmente adequada ao que eu estava disposta a pesquisar”, conta Joana, que atualmente está no último ano do mestrado e pesquisa o efeito da mesoterapia com cafeína e a ultracavitação para fins estéticos. Orientado pela professora Danúbia Frasson Furtado, o trabalho tem o objetivo de contribuir para a elaboração de protocolos inovadores e seguros, principalmente para pacientes com altos índices de colesterol e gordura no sangue.
Embora se sinta feliz por estar cursando o mestrado que tanto planejou, Joana confessa que teve de mudar o ritmo de trabalho e perder alguns momentos de convivência com o filho Lorenzo (6 anos) para conseguir dar continuidade aos estudos. “Tenho que contar com uma rede de apoio para conseguir dar conta de todas as minhas funções. A escola e a família ajudam bastante. Em relação à maternidade especificamente, ainda me pego me culpando algumas vezes. Mas os sacrifícios fazem parte do processo e acredito que o exemplo que estou dando ao meu filho tenha mais valor. Respiramos, acreditamos e seguimos”.