Ensino
Programa de Pós-Graduação da UNILA reconhece o guarani no exame de proficiência em língua estrangeira
Mba’éichapa (como está?) e Iporã ha nde (estou bem) são expressões na língua guarani que muitos estudantes da UNILA costumam ouvir nos corredores da Universidade, e até mesmo ensaiam usar para cumprimentar algum colega. São várias as possibilidades de línguas originárias que circulam na instituição, e essa realidade levou uma estudante indígena do Paraná, da aldeia Tekoha Ocoy, a solicitar que o Colegiado do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos (PPGIELA) aceitasse a sua língua materna, o guarani, em seu exame de proficiência em língua estrangeira.
Delia a Takua Yju Martines Rocha (Delia, em guarani, é Takua Yju) requereu o reconhecimento de equivalência do guarani, fundamentando o seu pedido com base no regimento do Programa, que diz: “Discentes indígenas que, além do português ou do espanhol, também falem uma língua indígena poderão requerer equivalência para fins de proficiência em língua estrangeira”.
A solicitação foi registrada no final do ano passado e a estudante foi avaliada após a entrega de um texto de autoapresentação escrito em guarani e depois traduzido para a língua portuguesa. O texto foi corrigido pelo docente colaborador do Programa Mário Ramão, que leciona língua guarani na UNILA e atua como coorientador da estudante na pós-graduação. “Como docente, certifiquei-me de que estava tudo certo e de acordo com a tradução, atestando que ela é realmente proficiente nesta língua. O pedido passou pelo Colegiado do PPGIELA e foi aprovado”, diz o docente.
Ele explica que, apesar de a solicitação dessa natureza ter sido a primeira na UNILA, outras instituições já haviam feito o reconhecimento de línguas indígenas brasileiras no acesso à pós-graduação. Mário reforça que, para a estudante, a língua principal é o guarani, não a portuguesa, e essa conquista com o Programa ajuda muito que os povos indígenas permaneçam na Universidade.
As motivações para uma mudança
Delia, que é formada em Pedagogia e atualmente trabalha como auxiliar de direção no Colégio Teko Ñemoingo, afirma que a UNILA proporcionou a ela uma oportunidade de se aproximar novamente ao ambiente universitário. “O que me motivou a ingressar na UNILA foi o fato de acompanhar os outros acadêmicos tendo o suporte necessário para permanecerem estudando e também o fato de alguns docentes visitarem a comunidade onde eu moro. Assim, eu já conhecia algumas pessoas queridas”, conta ela.
"Che cherera Delia jurua pe há cherery ka`aguy Takua Yju cherera joapy katu Martines Rocha. Che aiko Tekoha Ocoy."
(Meu nome é Delia, em guarani, Takua Yju, sobrenome Martines Rocha, moradora da Aldeia Indígena Tekoha Ocoy).
Em suas atividades acadêmicas, ela diz que é um grande desafio acompanhar os textos científicos em uma língua que não é a dela. Ela também comenta que sempre inclui elementos da cultura guarani nos trabalhos finais de disciplinas, justificando que outros estudantes como ela, no ambiente universitário, acabam seguindo o sistema do jurua (não indígenas) na forma de enviar as atividades, nas normas dos artigos científicos e nas demais atividades de escrita. “Esses são alguns dos motivos que levam os alunos indígenas a desistirem dos estudos. As universidades nos ensinam somente os conhecimentos eurocêntricos, ou seja, o mundo do jurua kuera. Já que estamos nos adequando ao sistema da Universidade, penso que seja importante as instituições se adequarem a algumas das nossas realidades, pelo menos na realização das avaliações”, reivindica ela.
Os argumentos de Delia ainda prosseguem na defesa do uso da língua materna no ambiente universitário. “Não somos falantes de português, falamos obrigatoriamente na língua do jurua porque precisamos nos defender e também [defender] o nosso povo, em qualquer lugar. Não somos alfabetizados na escrita do jurua para escrever cientificamente. Não crescemos no meio dos livros e do computador. Crescemos à beira dos rios, da fogueira, com cantos e danças e, principalmente, na casa de reza”.
A respeito do seu projeto para ingresso no mestrado, ela diz que ele foi escrito pensando nas crianças que futuramente vão para a escola, para que os alunos sejam alfabetizados na própria língua materna. E também pensando em aproximar cada vez mais currículos específicos para o Colégio Teko, onde leciona atualmente, levando a sabedoria guarani para a escola. “A criança indígena não precisa somente se alfabetizar, mas também seguir o sistema do ensinamento guarani”, defende ela. E finaliza com um agradecimento na sua língua: Aguyjevete!
Uma resposta para a integração
O que tornou possível atender à demanda de Delia foi uma revisão no regimento do PPGIELA, feita ainda no final de 2022. O nível de proficiência é uma exigência da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e algumas instituições colocam a proficiência como pré-requisito no ingresso de cursos de pós-graduação. No caso do PPGIELA, essa fase acontece antes do momento de qualificação do mestrando.
A orientadora de Delia, professora Laura Fortes, diz que, “como política institucional, o reconhecimento da língua indígena é bem importante para nós, enquanto UNILA, por conta do nosso projeto que pretende dar uma visibilidade maior e realmente integrar os saberes e as línguas originárias, que constituem a nossa ancestralidade”.
Na condição de pró-reitora de Pesquisa e Pós-Graduação, Laura Fortes considera que é importante que esse debate seja levado para as coordenações de outros Programas, para que questões como essa sejam ampliadas como política de reconhecimento e validação da língua indígena, incorporando mais ações afirmativas em seus editais e regimentos.
Para o docente do PPGIELA, Marcos de Jesus Oliveira, a adequação do regimento foi feita com a certeza de que uma Universidade se constrói com pluralidade de sujeitos, ideias e pensamentos. “A proposta está em consonância com os princípios da UNILA, com sua Política de Pós-Graduação e com as diretrizes da Capes, sobretudo no que diz respeito à questão da inclusão social; e visa a contribuir para o acesso e a permanência dos estudantes indígenas na Universidade. Sabemos que é um passo pequeno e que ainda precisamos avançar muito em matéria de inclusão, mas também sabemos que toda conquista, por menor que seja, deve ser celebrada”, comemora.
Década Internacional das Línguas Indígenas
Essa mudança também é celebrada principalmente quando a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) declara esta como a Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032). O intuito é refletir sobre as ameaças contra as línguas indígenas e, sobretudo, propor ações em nível nacional e internacional para a promoção e o fortalecimento dessas línguas. Mário Ramão reforça que, como parte de vários indígenas no Brasil que estão trabalhando pelo fortalecimento e pela valorização das línguas indígenas no país, que tem mais de 170 línguas cadastradas, a conquista da Delia é motivo de orgulho para todos da UNILA.
Laura Fortes frisa, também, que este é o momento de destacar o impacto social de reconhecer e fomentar a visibilidade e a real integração desses sujeitos que foram historicamente marginalizados por conta dos processos de colonização. “Fomentar o acesso e o espaço de representatividade e de fortalecimento das línguas e das culturas indígenas faz parte, também, do processo de integração do sujeito não só ali na sala de aula, mas que vai passar também pelo processo de formação na instituição. Envolve justamente reconhecer esses saberes e todo seu processo histórico”, finaliza.