Institucional
Mulheres da Améfrica Ladina ocupam espaços de saberes em encontros de aquilombamento
Mulheres em movimento, amefricanidades e aquilombamento foram alguns dos conceitos que delinearam as discussões de dois eventos que transcenderam fronteiras e academias ao possibilitar escutar as vozes de mulheres negras da América Latina e conhecer a sua produção intelectual e cultural. Desenvolvidos entre 26 e 29 de março em espaços localizados dentro e fora da UNILA, os encontros foram fruto do livro Vozes Mulheres da Améfrica Ladina: Movimentos de Aquilombamentos, publicado em 2022, que reúne relatos e reflexões de 43 mulheres da Colômbia, Argentina, Paraguai e de diversas regiões do Brasil. Na obra, elas apresentam suas experiências, falam sobre iniciativas de resistência e abordam questões sobre produção de conhecimento, tônica também seguida nos encontros.
Organizados pelas professoras Angela Maria de Souza e Júlia Batista Alves – que também coorganizam o livro, ao lado de Flavia Regina Dorneles Ramos – o “Encontro de Mulheres Amefricanas do Brasil, Paraguai, Argentina, Colômbia e Uruguai: Dialogando Saberes” e o “Encontro Entre Fronteiras: Aquilombamentos Amefricanos de Marina Tunirê” propuseram não apenas um debate acadêmico, mas uma vivência em espaços de saberes tradicionais. Por esta razão, além da UNILA, as atividades foram desenvolvidas nos ilês Asé Oju Ogún Fúnmilaiyó e Alaketu Asé Baru e nos quilombos Horta de Dona Laide, em Foz do Iguaçu, e Apepu, em São Miguel do Iguaçu. “É a importância de não só ficarmos aqui dentro da universidade, mas de sairmos, para que a gente consiga também, além de conhecer esses espaços, conhecê-los como locais de produção de conhecimento”, destaca Angela.
O conceito de escrevivência, da escritora Conceição Evaristo, essencial para a elaboração do livro, também permeou os debates dos encontros, que trouxeram a Foz do Iguaçu nomes como Lourdes Díaz, líder comunitária da comunidade afro-paraguaia de Kamba Kuá; Virgelina Chará, ativista e líder comunitária afro-colombiana; Tixa Cámera, poeta e integrante do Movimento Antirracista Afro-Argentino, e Nélida Wisneke, do Colectivo de Afrodescendientes Misionerxs, também da Argentina.
Dança e política
Uma das que participaram do livro que originou os eventos, a mediadora cultural Juliana Zacarias esteve também entre as que fizeram soar sua voz no evento. Na oficina “Movimentos Básicos de Danças do Oeste da África”, a egressa da UNILA propiciou uma imersão na cultura dessa região do continente por meio de passos ancestrais, da percussão e do canto.
Mestranda em Antropologia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Juliana pesquisa os ritmos do Império Mali e sua relação com a história e a política de resistência anticolonial. “A nossa proposta de pesquisa, estudo e trabalho é difundir a cultura artística do Oeste da África”, explica a mediadora.
Integrante do Coletivo DanzÁfrica Mandén, na oficina Juliana demonstrou ritmos como o yankadi, ligado a encontros sociais, e o Sintê, tradicional em casamentos e festivais, além do macuru. Segundo ela, o ensino das danças e ritmos faz parte de um projeto político iniciado em 1958, por meio do presidente guineense Ahmed Sékou Touré (1958-1984), visando o resgate dessa cultura no período de independência, após o domínio coloniaTrl francês, em que o país estava isolado.
Afro-paraguaias e afro-argentinas
Entre as convidadas do evento, Lourdes Díaz, liderança da comunidade afro-paraguaia de Kamba Kuá, compartilhou sua trajetória de resistência e preservação cultural. Também colaboradora do livro Vozes das Mulheres da Améfrica Ladina, ela trouxe para o encontro seu testemunho sobre a luta da população afrodescendente no Paraguai.
"Meus antepassados chegaram a Kamba Kuá neste mesmo local onde estamos até hoje e onde sempre resistimos”, contou. Em sua avaliação, como houve a segregação da comunidade por parte da sociedade paraguaia, pois seus antepassados não podiam sair da região, o local funcionou como um gueto, o que teve efeitos ambíguos: se, por um lado, preservou a cultura afro, por outro, dificultou a integração com outras comunidades, o acesso à educação e à integração social.
Localizada em Fernando de la Mora, região metropolitana de Assunção, durante quase 200 anos Kamba Kuá nunca teve um de seus moradores graduado em uma universidade. O que ocorreu apenas em 2000, justamente com Lourdes.
Além do campo educacional, a comunidade de Kamba Kuá tem uma trajetória marcante no ativismo político e na defesa dos direitos da população afro no Paraguai. Em 2015, a associação foi responsável por instituir o Dia da Cultura Afro no país, celebrado em 23 de setembro. Posteriormente, participou da elaboração da Lei Afrodescendente 6940/2022, que considera os atos discriminatórios e racistas como uma infração – mas não um crime. “Esta lei não pode ser apenas lápis e papel; ela precisa ser aplicada na prática”, enfatizou, criticando a omissão do governo em relação a episódios recentes de racismo – ambos direcionados a jogadores de futebol brasileiros.
Outra forma de racismo denunciado por ela é o apagamento dessa população, por meio da subnotificação da população afro-paraguaia. Situação semelhante é relatada por Tixa Cámera, do Movimento Antirracista Afro-Argentino, que se define como “uma desaparecida” em seu próprio país. “Supostamente, eu não existo. E isso é difícil no dia a dia. Sempre perguntam de onde eu sou, mesmo a pessoa estando com o documento de identidade na mão, lendo que eu sou do país”, contextualiza a ativista e poeta.
Memória
O evento também contou com a participação da líder social colombiana Virgelina Chará, diretora da Asomujer y Trabajo e ativista pelos Direitos Humanos. Em sua fala, no segundo dia dos encontros, no Quilombo Apepu, Virgelina destacou a importância da memória na luta contra o apagamento das histórias dos afrodescendentes. “Há muitos anos se fala, entre aspas, sobre a ‘abolição da escravatura’, mas ainda há um retrocesso nos países na resposta aos direitos dos negros no mundo”, afirmou.
Também líder do Colectivo Ciudadano Unión de Costureros e criadora da Rede Protectora de la Memoria, Virgelina trouxe ao evento a experiência de projetos que utilizam tecidos que seriam descartados para produzir bonecas e carteiras. Uma forma de utilizar a costura como modo de recuperação da memória. Ela ressaltou como o trabalho manual, historicamente desvalorizado, pode ser uma ferramenta de organização e empoderamento econômico. Em seu trabalho como ativista, além de recuperar o costume de fabricar as bonecas, Virgelina também confecciona flâmulas, que são expostas em prédios públicos, como forma de protesto.
Apepu
Anfitriã do evento, Gislaine Aparecida Correa Rodrigues, líder comunitária do Quilombo Apepu, também é uma das escritoras presentes na obra que originou os encontros. “Faço parte da escrita do livro, em que eu retrato a história da nossa comunidade, a vivência com os nossos avós. Nos sentimos muito gratas, muito honradas em poder receber todas na nossa comunidade”, afirmou.
O Quilombo Apepu abriga atualmente 12 famílias e recentemente passou a receber visitantes por meio do turismo de base comunitária. O reconhecimento oficial da comunidade como quilombo ocorreu apenas em 2003, embora a presença dos moradores na região remonte há cerca de um século.