Institucional
Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência: diga não ao capacitismo
Negar às pessoas com deficiência uma existência plena e a sua capacidade como ser humano tem nome: capacitismo. Esse conceito começou a ser utilizado nos anos 2000 e vem ganhando cada vez mais espaço nas discussões acadêmicas, redes sociais e mídias tradicionais. “É uma dimensão paralela ao racismo e ao machismo”, diz a professora da UNILA Ana Paula Araújo Fonseca, que ministra disciplina sobre educação inclusiva. “No caso do capacitismo, que traz uma idealização dos corpos e da vivência humana, as pessoas com deficiência não se enquadram nessa norma de perfeição colocada socialmente. A visão sobre as pessoas que não correspondem a esse corpo idealizado é uma visão de alguém inferior, como se ela não pudesse viver essa dimensão como qualquer outra pessoa”, explica.
“No caso do capacitismo, que traz uma idealização dos corpos e da vivência humana, as pessoas com deficiência não se enquadram nessa norma de perfeição colocada socialmente."
Tomar como natural a incapacidade de as pessoas falarem sobre si mesmas é uma das formas mais comuns identificadas como capacitismo. “Um exemplo bem corriqueiro é achar que as pessoas não têm o que falar sobre elas. A gente normalmente vê, quando uma pessoa com deficiência entra num ambiente, as pessoas se dirigem ao acompanhante dessa pessoa e não diretamente a elas”, pontua. “Parte-se do princípio de que a pessoa com deficiência teria uma condição menor ou não teria condição de fazer algo que se espera de uma pessoa sem deficiência. Parte-se do julgamento daquele corpo, daquela marca que a pessoa traz.”
Essa é uma situação que o estudante de Serviço Social Cristian Rada, deficiente visual, encontra com frequência. “Geralmente, quando eu saio com outra pessoa, sempre terminam perguntando para ela dados que eu sei responder. Muita gente não tem essa consciência de que eu posso ter deficiência visual, mas posso falar”, conta. Jacson Peruzzo, aluno de Medicina e usa cadeira de rodas, compartilha essa avaliação. "Percebo que existe uma romantização do coitadismo e da vulnerabilidade, o que traz uma visão equivocada de incapacidade das pessoas com deficiência. Isso causa um certo preconceito nas pessoas por acharem que não temos capacidade de assumir deveres, compromissos, trabalhos e desempenhá-los com qualidade", diz (leia mais depoimentos).
Mas o capacitismo também pode estar na supervalorização, diz a professora Ana Paula. “Pode se apresentar pela caridade, por achar que aquela pessoa merece benevolência. Parte-se do princípio de ausência de condições da pessoa para viver a sua cidadania, sua dignidade.”
Para a docente, o debate sobre o capacitismo e sobre as pessoas com deficiência vem crescendo, principalmente no Brasil, após a edição de leis específicas como a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146), aprovada em 2015. “A Lei Brasileira de Inclusão é o Estatuto da Pessoa com Deficiência e é muito recente. Eu diria que esse é um elemento relevante. A LBI é uma lei avançadíssima e uma importante referência normativa”, diz. Essa lei esteve em debate, lembra Ana Paula, por 15 anos, o que favoreceu que o assunto também estivesse mais presente em vários setores da sociedade e também na mídia tradicional. “O próprio cenário de elaboração de uma legislação é um cenário que aquece o debate. E quando a lei é posta em prática, esse é outro momento e ambiente relevantes.”
“Esse decreto colocou em xeque debates que pareciam estar avançados."
Outro fato importante na ampliação do debate, comenta Ana Paula, foi a adoção da Lei de Cotas para pessoas com deficiência (Lei 13.409/2016), sancionada no final de 2016 e que passou a vigorar em 2017. A UNILA adotou as cotas para pessoas com deficiência a partir dos processos seletivos de 2018, quando também fortaleceu o setor que faz o atendimento a esses alunos (leia amanhã no site da UNILA reportagem sobre esse assunto).
A edição, pelo governo federal, do decreto 10.502/2020, em setembro do ano passado, revendo a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, ajudou a fomentar as discussões em torno do assunto. O decreto foi suspenso pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e ainda vai a julgamento. “Esse decreto colocou em xeque debates que pareciam estar avançados em nosso arcabouço legal brasileiro, questões constitucionais e até mundiais”, argumenta Ana Paula, citando a Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU), editada em 2007, e a própria Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008.
A discussão sobre o assunto se torna ainda mais necessária quando se olha o resultado da Pesquisa Nacional de Saúde, realizada pelo IBGE em 2019 e divulgada no mês passado, e que mostra que o Brasil tem 17,3 milhões de pessoas com deficiência, das quais quase 70% não têm instrução ou têm apenas o ensino fundamental incompleto.
Além da legislação específica, o ativismo digital, nascido com a crescente vivência intermediada pelas mídias sociais, potencializa a visibilidade das pessoas com deficiência, que ganharam voz e espaço. “Esses ativistas passaram a colocar bandeiras específicas. A visibilidade só aumenta porque, além do próprio nicho das redes sociais, o assunto ocupa outras mídias a partir do momento em que essas pessoas começam a fomentar o debate, colocar o dedo na ferida, a falar dessas questões seja pelo humor, seja pela via da denúncia ao desrespeito à legislação.”
As mídias sociais, comenta a docente, por sua capilaridade, conseguem mostrar à sociedade o cotidiano das pessoas com deficiência, as barreiras que encontram e como o capacitismo está muito presente nas relações sociais. “Vivemos em um mundo que não favorece a visibilidade. A mídia social é um espaço onde todo mundo consegue ter a mesma dimensão de alcance. Esse elemento é de extrema importância, sobretudo para esse grupo que não tem acessibilidade em outro espaço.”
Como ferramentas que vêm proporcionando mais visibilidade às pessoas com deficiência, a professora cita ainda algumas séries e filmes, como "Special" (Netflix) e “Eu não quero voltar sozinho” (Netflix), que mostram questões que a maioria das pessoas não percebe. “Lembram que a pessoa com deficiência é, antes de tudo, uma pessoa. E pessoas com orientação sexual, religiões e cores de pele variadas.”
O caminho para superar o capacitismo, mais que informação, educação ou empatia, para Ana Paula, está no contato. “Acho que o contato é fundamental. O contato permite, às vezes sozinho, corrigir os fluxos. Você precisa entrar em contato com aquilo que é diferente, que você pressupõe ter ideias sobre, para poder construir efetivamente as ideias. Você precisa se abrir.”
Ela conta que, recentemente, em sua disciplina de educação inclusiva, solicitou à turma que fizesse contato com estudantes com deficiência. “Eles ficaram muito sensibilizados ao perceber o quanto não notavam as questões dos colegas, que não percebiam até que entraram em contato diretamente com eles”, comenta. “O contato e o respeito ao que cada pessoa é é a nossa maior lição. Só que a gente só vai ter essa lição quando permitir que as pessoas estejam ocupando todos os espaços”, comenta. “Daí a importância da educação inclusiva. Espaços inclusivos na sociedade levam a entender que todas as pessoas, independentemente das características que apresentam, vão poder viver a vida delas se as condições sociais forem adequadas.”
As barreiras que impedem o acesso das pessoas com deficiência, lembra a docente, são criadas pela própria sociedade que não vê a todos como merecedoras de atenção. “O problema não está nas pessoas, o problema está nas barreiras que são criadas socialmente para que as pessoas vivam as suas vidas. Uma sociedade inclusiva é pensada para todos. Você precisa ter uma sociedade alterada, arquitetura e comunicação alteradas para que todo mundo caiba no mundo. Pessoas não precisam ficar tentando se enquadrar no mundo, o mundo precisa ter as condições para todas as pessoas, precisamos de relações humanas e espaços onde caibam todos.”
A relação com as pessoas com deficiência vem evoluindo e em seu bojo também provoca alguns temores sobre como essas pessoas devem ser tratadas. Para isso, Ana Paula recomenda: pergunte como elas querem ser reconhecidas. Também pergunte antes de sair fazendo aquilo que acredita ser necessário, como, por exemplo, ajudar a uma pessoa cega a atravessar a rua sem perguntar a ela se é isso que ela quer. “Quando a gente diz que a pessoa não consegue fazer as coisas, isso é capacitismo. Parte-se de um princípio de que aquela pessoa não pode, não consegue, ou que aquilo não é pra ela”, afirma Ana Paula.
A primeira questão a ser pensada é como se referir a uma pessoa com deficiência. Assim mesmo: pessoa com deficiência. Essa é a nomenclatura correta. “Não à toa, essa ‘pessoa’ na frente é para lembrar justamente que é uma pessoa. Essa é a primeira dimensão”, enfatiza. Também não use o termo especial. “Ela não é especial, nem portadora de necessidades especiais.”
Algumas frases e ditados usados cotidianamente são considerados pejorativos e isso requer atenção. Veja abaixo algumas expressões que devem ser riscadas de seu vocabulário:
- “Em terra de cego, quem tem olho é rei.”
- “Você só dá mancada!”
- “Não tá vendo o lápis? Você tá cego?”
- “Parece retardado/débil mental.”
- “Tô meio autista hoje.”
- “Ela é muito bipolar.”
- “Tá se fazendo de surdo.”
- "Tá dando uma de João sem braço.”
- “Já tomou seu remedinho hoje?"
Saiba mais
Acompanhe nas mídias sociais pessoas que nos ensinam como podemos lutar contra o capacitismo e nos mostram o seu dia a dia.
Lau Patrón - Escritora, ativista e profissional da inclusão e cofundadora do @seja.ponte.
Ivan Baron - Influenciador da inclusão.
Fernando Fernandes - Atleta e apresentador de TV.
Mariana Rosa - Jornalista, educadora e militante integrante do @coletivohelenkeller, que busca a construção de uma pauta política para mulheres com deficiência.
Lorena Spoladore e Gabriela Vieira - Cegas em ação - Mostra o dia a dia das duas.
Leia amanhã matéria sobre o atendimento a pessoas com deficiência na UNILA.