Institucional
Pesquisador analisa a presença de mitos indígenas em produções audiovisuais
Cidade Invisível, produção brasileira em cartaz na Netflix, assim como outras séries e filmes, alia elementos da cultura guarani a uma narrativa pop. O docente do curso de Antropologia da UNILA Rodrigo Juan Villagra Carron, pesquisador da cultura indígena, fala sobre esse tema no episódio da série ¿Qué Pasa? desta semana. O programa pode ser assistido na íntegra no canal da UNILA no YouTube.
“Creio que é uma iniciativa que parece como um antigo, mas um renovado assombro, ou um interesse legítimo por conhecer, explorar, amplificar o conhecimento sobre as tradições, a cultura, a mitologia ameríndias. No caso de Cidade Invisível, é retocar temas que já são do folclore brasileiro, mas que devem sua origem à mitologia ligada ao povo tupi-guarani”, avalia.
Para ele, no uso de figuras tradicionais indígenas, ou mitos indígenas, como o saci-pererê ou o curupira, há uma “permutação” ou uma adaptação a diferentes contextos. “Os mitos têm origem guarani, mas já estão universalizados no contexto nacional de cada país”, observa. O saci-pererê, exemplifica o docente, no Paraguai e na Argentina, tem correspondente em Yasy Yateré, um menino de cabelos vermelhos. Dessa forma, em cada país esses elementos da mitologia guarani ganham contornos diferentes. Essas figuras, diz Villagra, “têm a ver com figuras muito presentes no mundo dos não humanos ou meta-humanos dos povos indígenas”. “As narrativas míticas são colocadas sob uma estrutura relativamente comum para expressar a ansiedade, a cosmologia e as condutas sociais adequadas.” Em Cidade Invisível, o folclore foi adequado ao cotidiano do Rio de Janeiro, comenta Villagra, e também incorporou outros elementos, como a luta pelo meio ambiente e um roteiro que incorpora mistério e suspense.
Ele cita a série Fronteira Verde, produção colombiana que também segue o mesmo modelo, aliando investigação policial e elementos do folclore da Colômbia. A história se passa em Leticia, cidade transfronteiriça onde vivem indígenas da tribo Ticuna. “São duas produções bastante novas e contemporâneas deste renovado assombro, com as tradições que foram repensadas, transformadas e popularizadas.”
A literatura infantil também é um exemplo do uso das tradições indígenas. Villagra cita o livro “Adormeceu a Margarida?”, de Maria Heloísa Penteado, no qual uma menina acorda na floresta cercada de figuras como o saci-pererê e o curupira. “De alguma maneira nos fazem pensar em nossa identidade como uma identidade alterna, que também pode oferecer outras facetas literárias, que não são lugares comuns”, diz, citando as figuras celtas, vikings ou europeias muito exploradas, como a Branca de Neve.
Sem fronteiras
“Não vamos ver nunca essas tradições se repetindo tal qual são, porque quem traduz trai, e quem trai cria e recria outra coisa em seus próprios termos.”
O tupi e o guarani e suas variações formaram uma base comum que une Brasil, Paraguai e Argentina e que criou um “imaginário coletivo” com elementos adaptados a cada país. “Toda tradição oral é anônima, e mais que anônima, comunitária ou coletiva, pertence a um povo em sentido amplo. No entanto, algum autor a retoma em um conto, agora pelos meios digitais [como o cinema], e então [essa tradição] se expande”, diz e completa. “Não vamos ver nunca essas tradições se repetindo tal qual são, porque quem traduz trai, e quem trai cria e recria outra coisa em seus próprios termos.”
Sobre a crítica de haver apropriação cultural por parte dos produtores das séries, Villagra polemiza avaliando que as figuras folclóricas não são mais encaradas como tradições hoje em dia. “Obviamente, pode haver vozes que digam que sim, que isso é parte de sua tradição que foi tomada sem consulta”, diz, lembrando que questões de direitos intelectuais e patrimoniais são muito discutidas na América Latina. “Nesse contexto, eu diria que a série retoma uma tradição brasileira que tem origem guarani e que essa origem não necessariamente será reivindicada pelos guaranis”, avalia, dizendo que hoje a nação guarani tem muitas divisões e cada uma delas tem figuras diferentes, que podem citar saci-pererê ou curupira, mas que não vão necessariamente tratá-las como divindades de seu “panteão”. “Nenhum xamã vai mencionar o saci ou o curupira como parte de seu mundo religioso.”
Porém, ressalva o pesquisador, essa questão não isenta os produtores de filmes e séries da consulta aos indígenas. Os ticunas, afirma, foram ouvidos para a produção de Fronteira Verde; em Pássaros de Verão, a língua usada na maior parte do tempo é a dos wayuu – povo que vive entre a Venezuela e a Colômbia e empresta elementos à trama.
A exploração de mitos, narrativas e religiosidade ameríndia pela cultura pop, diz o professor, esbarra na necessidade de compreender o contexto e de refletir sobre um interesse e um código a ser entendido. “Os mitos indígenas refletem uma origem determinada que explica como o mundo é mundo. Para entender como o sol e a lua se formaram – um dos mitos ameríndios mais difundidos –, precisamos entender o contexto, porque de outra maneira [a história] não terá força”, comenta, lembrando que esse mito tem animais e plantas presentes no cotidiano dos indígenas, assim como tantos outros. “É claro que, em um formato adequado, todos esses mitos podem nos trazer e propor outra explicação do mundo que não é a nossa. Mas, digamos, na narrativa em que está, ou fio narrativo, as características têm de ser mais ou menos respeitadas.”