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Na transmissão de vírus, um morcego não é mais perigoso que uma galinha, diz biólogo

No terceiro episódio da websérie Fator Ciência, Hermes Schmitz analisa as origens do coronavírus e as condições para o surgimento de novas pandemias
publicado: 22/05/2020 10h25, última modificação: 22/05/2020 13h31

Não acho que seja mais perigoso um morcego do que uma galinha”, diz o docente da UNILA Hermes Schmitz ao analisar as origens do novo coronavírusEle explica que a transmissão de vírus independe do animal. “Não é porque é exótico que a probabilidade é maior. Na história das pandemias, muitas doenças foram transmitidas por animais que a nossa civilização ocidental não considera exóticos.”

O sequenciamento do vírus Sars-Cov-2 aponta semelhanças com vírus encontrados no morcego ou no pangolim, um mamífero que tem seu habitat em países asiáticos. “O que temos até o momento, provavelmente, envolve um ou os dois animais, com a possibilidade de ter passado do morcego para o pangolim, e o pangolim ter servido como um intermediário até os humanos”, comenta. “Sabe-se, de longa data, que humanos e animais trocam vírus regularmente. Essa é a origem da maior parte das doenças infecciosas”, pondera.

Hermes Schmitz, docente dos cursos de graduação em Ciências Biológicas – Ecologia e Biodiversidade e Ciências da Natureza – Biologia, Física e Química, é o terceiro entrevistado da nova temporada da websérie Fator Ciência, produzida pela Secretaria de Comunicação da UNILA. Doutor em genética e biologia molecular, Schmitz também é docente no Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade Neotropical. O episódio também está disponível em formato de podcast no Spotify.

Assista à entrevista na íntegra

Sobre as questões culturais que envolvem a origem da pandemia, Schmitz diz que “a cultura exótica é sempre a do outro”. Segundo ele, embora o que se sabe até agora aponte para o morcego ou para o pangolim como transmissores do coronavírus, não há fundamento dizer que a pandemia começou com “uma sopa de morcego”. “Ainda não sabemos [como começou]. É muito difícil um vírus ser transmitido diretamente pela alimentação. Não sobreviveria ao cozimento. É mais provável que o vírus tenha sido transmitido pelo contato do ser humano ou com o animal vivo ou com suas secreções ou com a carne fresca”, analisa.

Ele pondera que, embora não se possa olhar com preconceito hábitos alimentares diversos, não é possível negligenciar o fato de a China ter um contexto sociocultural que pode ser facilitador da transmissão de novas doenças. O problema não estaria, então, necessariamente, na cultura alimentar, mas em como o alimento chega ao ser humano. Os primeiros casos de Covid-19 estão ligados a mercados onde são vendidos animais vivos ou recém-abatidos para alimentação ou para uso na medicina tradicional. Nesses espaços, muitas vezes, são colocados lado a lado, aglomerados, “animais que jamais se encontrariam na natureza” e onde há também uma grande circulação de pessoas. “Essas condições facilitam a disseminação de doenças emergentes. No entanto, chamo a atenção que essas condições não são exclusivas da China. A gente encontra condições muito semelhantes em vários outros lugares do mundo e há outros contextos que também facilitam essa disseminação.

Na América Latina, aponta o docente, há um tráfico intenso de animais, o que também oferece ambientes propícios para a disseminação de vírus de um animal para outro e para seres humanos. Entre essas condições estão a aglomeração de animais, de diferentes espécies, convivendo em espaços mínimos durante o transporte.

Outra condição facilitadora para a transmissão de vírus de animais para humanos, aponta o pesquisador, estaria na forma de criação de animais adotada nos países da região e que se caracterizam por um “extremo confinamento”. “É o caso clássico de uma granja de frangos. Milhões de frangos em espaço muito exíguo, em contato muito próximo, com fezes e secreções, às vezes, animais mortos, o que é uma receita perfeita para a disseminação de vírus muito rápida entre eles. Inclusive, isso não é especulação, é realidade. Já tivemos vários exemplos recentes de disseminação de doenças em frangos e outros animais confinados que necessitaram, às vezes, ser sacrificados e incinerados. E não apenas na China, mas também na Europa e nos Estados Unidos”, comenta.

Mudanças ambientais

Schmitz explica que as mudanças ambientais, que incluem a ocupação, pelo homem, de ambientes selvagens, e a velocidade com que essas mudanças são registradas também são fatores para o aparecimento de novas doenças, porque, ao ocupar uma área nova, selvagem, o homem entra em contato com os patógenos presentes nos animais do local. “As pandemias se tornam cada vez mais comuns porque estamos cada vez mais em contato com uma diversidade de patógenos com os quais não estávamos em contato antes”, afirma.

Esses contatos podem se dar de forma direta (homens-animais selvagens) ou também entre os animais domésticos criados pelo homem e os animais da região. E ainda tem as espécies sinantrópicas (aquelas que colonizam habitações humanas e seus arredores), como ratos e mosquitos, que também entram em contato com a diversidade de vírus e outros patógenos que vivem no local. “Essas alterações ambientais muito rápidas, o desmatamento, a ampliação de campos agrícolas, a urbanização de regiões selvagens criam um ambiente facilitador da emergência de doenças infecciosas novas”, pontua. “Esse é um cenário que vai muito além da China. Dá para descrever quase perfeitamente o que está acontecendo na Amazônia, no Cerrado, e em vários ecossistemas no Brasil e em outras partes do mundo.”

Além do tráfico de animais e da ocupação de áreas silvestres, o pesquisador aponta outras condições facilitadoras para a instalação de pandemias no Brasil, como o desmatamento, as grandes aglomerações urbanas, a desigualdade social, as baixas condições de saneamento, o enfraquecimento de sistemas de saúde pública e de inspeção sanitária de bens de consumo, e a precarização dos institutos de pesquisa e universidades públicas.

Loteria

Nem todos os vírus presentes nos animais serão uma ameaça para o ser humano. “Temos novos vírus surgindo a todo momento, por mutações aleatórias”, explica. “A evolução não tem como parar. Como todos os seres vivos, patogênicos ou não, também os vírus, todos estão sofrendo processo de mutação aleatório, que é contínuo.” Os vírus, em especial, explica Schmitz, têm ciclos de replicação e taxa de mutação muito rápidos.

Segundo ele, grande parte dessas mutações pode não trazer nenhum efeito, mas, no processo de seleção natural, ganha o que tiver mais condições de sobrevivência. “Uma pequena parte dessas mutações vai produzir um efeito que afete a viabilidade do vírus naquele hospedeiro, que lhe confira uma vantagem, uma maior eficiência, uma maior adaptação à fisiologia do organismo que ele infecta, ao sistema imunológico ou, muito importante, na possibilidade de transmissão de um organismo para outro.”

"A maior ameaça à nossa vida neste planeta não é a Covid. A Covid é a emergência de agora, mas há uma crise climática e ambiental muito mais grave"

“É uma loteria”, compara. “A probabilidade [de que a transmissão do vírus] leve a uma doença, a uma epidemia, é baixíssima, mas temos muitas pessoas e muitos animais, muitos contatos. Mesmo que a probabilidade seja muito baixa, havendo muitas oportunidades, em algum lugar isso vai acontecer. Essa é a parte que é inevitável”. 

O que está na possibilidade de ação, destaca o docente, é evitar a disseminação dessas doenças emergentes para uma quantidade elevada da população e o consequente estabelecimento de uma epidemia ou pandemia.

Ciência

Schmitz critica os que negam a ciência ou diminuem a importância da pesquisa científica, como tem sido comum. “Ciência virou quase um BBB. Está todo mundo discutindo nas redes sociais. Cada um tem seu remédio preferido. A impressão que eu tenho é que as pessoas não querem ciência, querem milagre”, adverte. “Ciência não pode dar cura de uma hora pra outra. Ciência é um processo contínuo, ciência demora.”

Para ele, a pandemia de Covid-19 pode ser uma oportunidade para chamar a atenção sobre o perigo que é a negação da ciência. “Existe um mito de que a ciência é dona da verdade. A gente não tem verdades absolutas. Está sempre rediscutindo aquilo que acha que sabe. E não é briga de opinião. Nossos desejos, vontades, ideologias não influenciam em absolutamente nada em como a natureza funciona. A natureza despreza completamente a nossa opinião e se impõe. Ela sempre vai se impor”.

Ele lembra que ciência vem alertando sobre o aparecimento de pandemias como a Covid-19 e outras já registradas, como a da Zika, Sars, H1N1 e Aids. E também para o reaparecimento do sarampo, tuberculose e febre amarela. “Uma das características que eu mais gosto na ciência é a de previsão. Essas previsões que se concretizam são dos principais aspectos que mostram que a ciência de fato funciona. Não só para entender o presente, mas para saber como seria o futuro.”

A série

A websérie Fator Ciência estreou no dia 8 de maio. Por conta do período de isolamento social, o programa está em novo formato e foi gravado a distância, por meio da plataforma Zoom. Os capítulos serão divulgados sempre às sextas-feiras, no canal da UNILA no YouTube e também em formato podcast no Spotify.

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