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A produção e consumo de literatura estão em debate no ¿Qué Pasa?

A docente Lívia Santos de Souza fala sobre os desafios e conquistas da literatura não hegemônica
publicado: 06/08/2021 17h01, última modificação: 06/08/2021 17h14

Apagamento da literatura latino-americana. Autores periféricos. A absorção de empresas do setor literário por grandes conglomerados. Esses são alguns dos temas de reflexão de Lívia Santos de Souza, docente do curso de Letras – Espanhol e Português como Línguas Estrangeiras e do Programa de Pós-Graduação em Literatura Comparada, entrevistada do episódio desta semana da série ¿Qué Pasa?, produzida pela SECOM. O programa completo está disponível no canal da UNILA no YouTube.

 As literaturas brasileira e latino-americana, reflete Lívia, ganharam personalidade própria a partir do momento em que os autores deixaram de copiar o padrão hegemônico europeu, e mais tarde, o norte-americano, para dar-lhe um novo sentido. Um processo que com o passar do tempo se torna cada vez mais complexo. “Muita coisa é copiada e é ressignificada, reelaborada na América Latina, dialogando com esses padrões e esses modelos europeus. [É] se apropriar do modelo europeu, processar aqui na América Latina e construir essa literatura que é nossa, que também tem essa relação com o que é local, com o que é nativo, com o que é próprio da América Latina”, diz, citando como exemplos dessa apropriação o Movimento Antropofágico e o Modernismo brasileiros e lembrando que existem outros movimentos na América Latina que também fazem esse exercício, como o Realismo Fantástico.

Para ela, não é mais possível a literatura hegemônica ser localizada apenas geograficamente, porque o “movimento de migração e de fluxos tão intensos” no século 21 “torna essas questões muito mais complexas”. “Mesmo esses espaços do poder global, do norte global, Estados Unidos, Europa ocidental, têm grandes populações que são de origem do sul global. Pensar hoje a literatura norte-americana sem considerar que existe uma literatura latino-americana escrita em inglês, nos Estados Unidos, é impossível. É muito interessante pensar como mesmo essa literatura hegemônica também tem vozes não hegemônicas”, reflete. Esse cenário pode ser ainda mais complexo ao se considerar, diz ela, o fato de uma série de escritores, nascidos nos Estados Unidos, serem filhos de imigrantes de países caribenhos, ou serem, eles mesmos, imigrantes, e produzirem literatura em inglês. “Estão vinculados a um espaço literário que é transnacional, porque ao mesmo tempo em que eles produzem literatura latino-americana, eles também produzem literatura norte-americana.” O mesmo acontece na Europa. “Então pensar essa hegemonia literária, hoje, é muito curioso e muito complexo.”

Muita coisa é copiada e é ressignificada, reelaborada na América Latina, dialogando com esses padrões e esses modelos europeus. 

Falando sobre o mercado editorial, Lívia destaca que, além de as editoras estarem focadas no que mais vende – autoajuda e finanças –, existe uma concentração de grupos editoriais que vem se acentuando nas últimas décadas. Ela cita especificamente o caso argentino para falar da redução do número de editoras, que passam a ser controladas por grandes corporações. “O mercado editorial argentino era muito mais respeitado do que ele é hoje”, diz. Na contramão, também vem se registrando o surgimento de pequenas editoras, salienta, e que “são praticamente artesanais e que têm uma relação com o livro que é uma relação muito mais da paixão, muito mais da relação com a literatura, com o texto literário de fato”.

A circulação e a distribuição concentrada nas mãos de poucos têm na Amazon o grande exemplo, ilustra Lívia. E, nesse caso, não somente as pequenas livrarias, mas principalmente as grandes redes perderam espaço no mercado. “É muito cedo para pensar os resultados dessa grande concentração da Amazon. Eu não tenho respostas muito concretas para isso. Mas acho que é um movimento que a gente vai acompanhar muito de perto nos próximos anos.” Numa perspectiva oposta, lembra a docente, “a Amazon é uma plataforma de venda de livros, mas é uma grande plataforma de publicação também”, em que uma pessoa pode autopublicar-se e comercializar seus e-books.

Difícil acesso

Esse silenciamento [de autores não hegemônicos] existe e continua existindo, mas o que a gente vê paralelamente são movimentos que tentam fazer com que esse silenciamento seja menos efetivo.

A literatura não hegemônica chega com mais timidez para o público em geral, e a resposta para essa dificuldade de acesso é extensa, comenta Lívia. Entre os elementos que impactam nessa condição, diz ela, está a própria dificuldade de inserção no mercado editorial de pessoas que podem ser identificadas como não hegemônicas, ou periféricas. Ela cita como exemplo Itamar Vieira Júnior, o autor do premiado “Torto Arado”, romance que trata de populações quilombolas no interior da Bahia. O livro se tornou um best seller porque o autor venceu o prêmio da editora LeYa. “É um exemplo para pensar como é difícil para o autor periférico, para o escritor fazer a literatura, entrar nesse grande circuito, em que estão as grandes obras, em que aparecem os livros que se tornam best seller. É de fato muito difícil que essa literatura chegue a esses espaços de poder e de hegemonia.”

Outro ponto que dificulta o acesso a obras de autores periféricos é a própria questão linguística, a falta de tradução de línguas não hegemônicas. “Dificilmente, a gente tem contato com essas outras literaturas do sul global, a não ser por iniciativas muito pontuais de tradução de grupos, ou se existir, de fato, um grande nome de vendas identificado com esses lugares”, esclarece.

A divisão do português e do espanhol como línguas dominantes na América Latina também interfere nesse processo. “Acredito que existe um entrave na circulação das obras que se dá um pouco por causa da língua. Existe um desconhecimento mútuo quando a gente pensa a América hispânica e o Brasil [no que está] relacionado à língua.”

Novamente apontando uma contramão nesse processo, Lívia cita os slams: “eventos literários de poesia falada, vinculados à cultura hip-hop, que têm crescido muito no Brasil e têm funcionado para o jovem da periferia como um espaço para falar, espaço de voz e relacionado à literatura”, destaca, lembrando que é um movimento que também tem se destacado na América como um todo. “Esse silenciamento [de autores não hegemônicos] existe e continua existindo, mas o que a gente vê paralelamente são movimentos que tentam fazer com que esse silenciamento seja menos efetivo.”