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A colonização da África do Sul sob o olhar de duas autoras inglesas

Neste episódio do ¿Qué Pasa?, o pesquisador Evander Ruthieri analisa obras de Anna Howarth e Mary Ann Hobson sobre literatura e política colonial
publicado: 07/02/2022 10h26, última modificação: 13/07/2023 16h30

As histórias recorrentes de heróis brancos, colonizadores europeus no melhor estilo aventureiro de filmes de Hollywood, estiveram muito presentes em obras de autores ingleses no final do século 19. Esse contexto – carregado de imaginários construídos nos romances de aventura, que traziam histórias de quem chega a novas terras para explorar outros territórios – foi a base dos estudos do pesquisador Evander Ruthieri, professor do curso de História - América Latina, da UNILA. Neste episódio da série ¿Qué Pasa?, o docente conta que buscou trabalhar com literatura a partir da pesquisa em história, mais especificamente no que diz respeito à política colonial, por meio de obras das autoras Anna Howarth e Mary Ann Hobson ambientadas na África do Sul.

Ruthieri explica que no final do século 19 os romances de aventura eram idealizados como escrita de homem, um gênero produzido por homens para serem consumidos por leitores homens, principalmente pelo público infantojuvenil. E que na maior parte desses romances os personagens também eram principalmente homens brancos que saíam da Inglaterra e iam para a África atrás de riquezas, de aventuras e de ascensão social. “Quando a gente pensa o contexto político da época, esses romances de aventura funcionavam quase como uma cartilha do colonialismo. Eles formavam a imaginação dos leitores com imagens, com discursos sobre a África, sobre os africanos e as riquezas que poderiam ser exploradas”, pontua ele.

Na sua trajetória de pesquisa, no entanto, Evander interessou-se por analisar obras de mulheres que escreveram romances de aventura, incluindo questões de política colonial a partir da literatura. Assim, o docente estabeleceu o recorte de sua pesquisa nessas duas autoras, que nasceram na Inglaterra e migraram para a África do Sul, especificamente para a Colônia do Cabo.

A construção da sociedade colonial

Mary Ann Hobson migrou ainda criança e viveu em Colônia do Cabo por aproximadamente 40 anos. A partir da década de 1880 ela publicou uma série de livros que falavam sobre o cotidiano no sul da África e mesclavam a questão do cotidiano com episódios de aventura. A autora trabalhava com temas relacionados aos trabalhadores nas fazendas e nas minas e também às guerras provocadas pela expansão colonial. “Basicamente, é um romance em que ela está idealizando que tipo de colono, que tipo de homem deveria ir para o sul da África”, aponta ele.

Ruthieri explica que Anna Howarth é de uma geração posterior. Era uma mulher solteira, que nunca teve filhos e que começou a trabalhar como enfermeira. Escreveu quatro romances, além de poemas, artigos de jornais e relatos de viagem. Dessa autora, o docente escolheu o romance "Espada e Assegai", publicado em 1899, mas que foi ambientado 40 anos antes e que narra uma série de guerras que aconteceram entre os colonos britânicos e os povos nativos.

Em comum, está o fato de as duas escritoras – que se identificavam como anglo-africanas – escreverem sobre o processo de expansão do colonialismo. Em suas obras, mostravam-se entusiasmadas pelo processo, mas também preocupadas com o impacto que ele teria na vida dos pequenos agricultores e trabalhadores dos campos de mineração. Isso num contexto literário que era visto como exclusivamente masculino. “Escrever literatura permitia que essas mulheres também entrassem num campo que não era muito acessível às demais, que é a política. Porque a escrita é um gesto entre o público e o privado: você escreve no cerne da privacidade, da intimidade, mas depois publica, manda para fora, sem necessariamente sair do espaço privado”, explica o pesquisador.

Outro tipo de herói

Apesar de as duas autoras serem mulheres inglesas, brancas, de classe média e que só puderam viajar e migrar por causa do colonialismo, para fazer a sua criação literária elas usavam da mesma fórmula que seus companheiros homens, ao utilizar do heroísmo colonial. Mas ao contrário de caçadores, comerciantes, homens jovens que encontram um lugar no continente africano para fazer ações extraordinárias, como encontrar tesouros ou civilizações perdidas e combater o perigo das tribos selvagens, nos romances dessas autoras o herói era outro. “São os pequenos colonos, agricultores que saíram da Inglaterra para tentar a sorte no sul da África e que por um motivo ou outro se envolvem com episódios de aventura, de conflito, de risco à sua sobrevivência. É esse pequeno herói, colono comum, que interessa a essas duas escritoras”, afirma ele.

Porém, Ruthieri não tira dessas autoras a carga de tentarem justificar as ações coloniais britânicas, já que suas obras traziam discursos de que os ingleses eram bondosos e protetores, enquanto os africanos eram tidos como crianças que necessitam de amparo, de tutela e proteção paterna. “Nas obras dessas autoras também aparece essa tentativa de justificar o colonialismo, idealizando esse processo como uma força benevolente, que ia proteger os africanos negros, que ia trazer progresso para as colônias. Todos esses discursos são muito perigosos porque eles escondem o que o colonialismo era de fato. Foi um processo violento, de exploração, de invasão de terras, de genocídio, de construção de toda uma estrutura de poder racista”, analisa.

Entre as personagens de seus romances, as autoras desenvolvem protagonistas como um rapaz órfão que perdeu quase toda a família em conflitos na fronteira e um homem comum que se converte em um bravo soldado quando chega a hora da guerra, ou então uma mulher que viaja sozinha para a África do Sul atrás do marido desaparecido nas minas de diamantes. À exceção dessa última, Ruthieri conta que, em geral, “as personagens também têm um comportamento muito conservador, o que é paradoxal, pensando que são escritoras. Mas nos seus romances as mulheres aparecem quase sempre na condição de mães e esposas. Elas não fogem muito da tradicional feminilidade do século 19”.