Institucional
"A África sempre foi vítima das narrativas", diz pesquisador
O Brasil desconhece a África ou acredita conhecer uma África que está bem longe da realidade. O continente africano é composto por 55 países com diferentes cenários econômicos, sociais e culturais, mas as notícias que chegam estão apenas relacionadas a conflitos, golpes de estado, tragédias. Para falar um pouco mais sobre a África e algumas de suas peculiaridades o ¿Qué Pasa? ouviu o professor do curso de Relações Internacionais e Integração Mamadou Alpha Dialo, que tem pesquisas sobre conflitos, guerras e processos de integração regionais na África e Oriente Médio e história da África contemporânea.
“Na verdade, o continente africano sempre foi vítima das narrativas, da construção de uma histórica única, como alguns diriam. Há sempre uma tentativa, uma indústria que lucra com essas notícias. Mostrar a tragédia no continente africano é uma das fontes de atuação de grande parte das organizações internacionais”, diz Mamadou, que não exclui dessa lista organizações não governamentais (ONGs) como a Médico sem Fronteiras ou a Cruz Vermelha. “Eu trabalhei com as duas. Certamente essas crises são fontes de atuação, pelo menos, se a gente não puder falar em lucro porque são organizações sem fins lucrativos.”
Ele aponta que existe pouca aproximação com o continente africano. “Você tem crises, lugares que não têm saneamento básico, as mais variadas situações no continente africano, mas também, em oposição a isso, você tem uma África que está muito longe daquela imagem que é traçada.” Ele cita dados do documentário “Presidentes Africanos”, no qual são retratadas as transformações do continente ao longo da história. “Na primeira década do século 21, os países africanos eram os que mais cresciam. São questões que, na maioria das vezes, a gente não visualiza. Principalmente no Brasil, onde [há] duas formas de distorções. A primeira distorção é que grande parte dos países africanos não fala português, então a informação que chega até nós é uma informação da informação. É uma interpretação da informação. Do outro lado, você tem a construção de uma imagem da África que ajuda a justificar a própria situação social no Brasil. Tem de mostrar uma África pobre, coitada, para poder justificar certas situações”, analisa.
Recentemente, duas notícias sobre a África foram divulgadas pela imprensa: os golpes – ou tentativas de golpe – em seis países do continente durante a pandemia e o conflito armado na Etiópia, país governado por Abiy Ahmed, ganhador do prêmio Nobel da Paz, em 2019 por seus esforços em acabar, justamente, com as hostilidades que ganharam força. Para Mamadou, Ahmed tem parte da responsabilidade pelo que está acontecendo no seu país. “A gente não pode tirar responsabilidade do governo. Mas é preciso lembrar que esse conflito que está sendo atribuído a ele não é um conflito que surge quando ele chega ao poder. Na verdade, ele chega ao poder graças a esse conflito que é histórico. Em 1800 o conflito já estava ali.”
Sobre o que foi noticiado como golpe de Estado, Mamadou lembra que a África é composta por 55 países e que 6 deles estarem nessa situação pode ser considerado “insignificante”. “E há uma questão que é central: esses golpes de estado, desde 2000, têm um papel de transição de poder, por mais que isso ainda seja discutível. A maioria das vezes são golpes que acontecem ouvindo principalmente a voz do povo”, argumenta, lembrando que durante a guerra fria, quando o continente era formado por 53 países, pelo menos 80 chefes de estado foram depostos. “Hoje esses golpes em que os militares tomam a decisão de intervir na política são porque a sociedade certamente não aguenta mais o comportamento de um ou outro governante.”
Para ele, a individualidade das lideranças está no cerne do problema. “O trauma dos países do terceiro mundo, não estou dizendo somente dos países africanos, acho que é o fato de a elite política sempre pensar mais em si do que nos interesses da sociedade como um todo.”
A pandemia não agravou ou provocou os conflitos noticiados, diz Mamadou. “A pandemia no mundo inteiro acentuou as crises, aumentou as desigualdades sociais no sentido mais amplo. No caso do continente africano não diria que agravou a situação”, pondera. “[Esses conflitos não surgiram na pandemia], mas são conflitos que eu chamo de conflitos internos e internacionalizados. São conflitos causados basicamente pelas intervenções das democracias imperiais."