Institucional
Crise econômica: “A saída para os nossos países não será um voo solo”
Luciano Wexell Severo é o convidado do segundo episódio da websérie Fator Ciência, que estreou na semana passada (dia 8 de maio) e que tem a Covid-19 e seus reflexos como tema desta temporada. Professor de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPG-ICAL), Luciano Severo é doutor em Economia Política Internacional, e entre seus temas de pesquisa estão economia latino-americana contemporânea e integração econômica, blocos econômicos regionais e a formação econômica da América Latina.
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“A situação neste momento é que a crise econômica, que já estava presente, foi ou será intensificada pela pandemia”, analisa, após lembrar que nas últimas duas décadas a América Latina viveu momentos econômicos distintos. Primeiro, a expansão da exportação, nos anos 2000, com a explosão dos preços das matérias-primas, fruto da crescente demanda da China, e a consequente entrada de dólares que financiaram alguns processos de transformação social com uma melhora na distribuição de renda. A partir de 2011, o preço das commodities (cobre, minério de ferro, petróleo, produtos agrícolas) começa a cair, e a economia da região cresce menos do que na década de 80, a chamada década perdida. “A grande entrada de dinheiro não se refletiu, na maioria dos nossos países, na geração massiva de empregos, no aumento da renda de maneira sustentada, no poder de compra dos trabalhadores, na distribuição da riqueza e da renda”, comenta.
Para ele, os governos tentarão justificar a crise econômica com a crise sanitária provocada pela Covid-19, mas a América Latina já apresentava sinais de tensão antes disso. “A região, sem nenhuma dúvida, está pegando fogo e estava pegando fogo. A manchete do jornal mudou, o problema agora é um vírus, uma característica desesperadora e que vai derrubar ainda mais as nossas economias”, avalia, citando a previsão do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial e da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal) de que “esta crise deve ser maior do que a que todos aprendemos a respeitar, que é a crise dos anos 30”.
O professor observa que o Brasil está entre as dez primeiras economias do mundo, mas que, ao mesmo tempo, a economia brasileira é uma das dez mais desiguais. “A concentração de renda no Brasil é algo obsceno e esta crise revela toda a perversidade desse esquema”, afirma.
"O poder das grandes corporações, o poder do mercado, o poder do mercado financeiro, da especulação financeira, foram ganhando uma dimensão tal que a crise que estamos vivendo é uma crise do liberalismo de novo, uma crise do neoliberalismo"
Na perspectiva de que o Estado, a partir dos anos 60, cedeu espaço ao mercado e às grandes corporações, Luciano Severo vê a saída da crise sanitária com pouco otimismo para a mudança de rumos para a classe trabalhadora. “Nós não temos absolutamente nenhuma garantia de que sairemos desta crise num mundo melhor, num mundo de paz, de irmandade, de amor, de solidariedade, ou que os trabalhadores, que as grandes maiorias, tenham mais benefícios do que antes, não temos absolutamente nenhuma garantia.”
Para ele, não há dúvidas de que a solução para a crise na América Latina, em especial na América do Sul, passa pela integração econômica dos países. “A saída para os nossos países não será um voo solo”, assinala, lembrando que o Brasil precisa exercer sua liderança nessa integração, por ser o maior país da América Latina, a maior economia e possuir outras vantagens geográficas e de infraestrutura. “Se o Brasil não construir uma política de liderança, de aproximação, [os demais países da região] vão se integrar com alguém [Estados Unidos, China]. É a compreensão de que o futuro do Brasil está necessariamente vinculado ao futuro dos vizinhos.”
O professor lembra que as economias da América Latina estão passando por um processo “violento” de reprimarização da sua estrutura produtiva e da sua pauta de exportação. A pauta de exportações do Brasil para a China, nosso principal parceiro comercial, cita Luciano, é composta por, aproximadamente, 95% de produtos primários e apenas 5% de produtos manufaturados. O inverso do que acontece com a pauta de exportações na América Latina. “Cerca de 85%, 90% de tudo que nós vendemos para os vizinhos são produtos com algum valor agregado, ou com mais valor agregado. Produtos que não entram na Europa, não entram nos Estados Unidos, ou entram com mais dificuldade”, observa.
“A saída, portanto, mais uma vez, porque em outros momentos da história foi assim, na crise de 29 foi assim, é substituir importações por produção nacional, olhar para os vizinhos, complementar o comércio com os vizinhos”.
Com o comércio entre vizinhos, seria possível, reflete Luciano, a volta das negociações sem o uso do dólar, prática já utilizada nos anos 1980, uma vez que “não poderemos contar com dinheiro das grandes agências internacionais de fomento, porque não vai ter dinheiro”.
Estudos conduzidos pelo Observatório da Integração Econômica da América do Sul, ligado à UNILA, mostram que é preciso e possível criar uma matriz de complementação comercial. “O Brasil muitas vezes compra de outros lugares do mundo coisas que poderia comprar da região”, afirma, citando como exemplo a compra de fertilizantes, pelo Brasil, em países como o Marrocos e a Ucrânia, sendo que essa compra poderia ser feita no Peru, na Venezuela ou no Chile. “Por que não compra? Aí entramos nos nossos problemas da integração: falta de infraestrutura, de mecanismos de financiamento. [Mas] o Brasil e os vizinhos têm complementariedades econômicas. Nós poderíamos comprar muito mais dos vizinhos e vender muito mais para os vizinhos. Para isso é necessário inteligência comercial, disposição, interesse por parte dos governos.”
A pandemia, diz o docente, “acelera e catalisa a necessidade ou a compreensão da necessidade de transformação” do cenário atual de concentração de renda, empobrecimento e primarização da economia nos países da América do Sul. “[A crise gerada com a pandemia] coloca no nosso caminho uma encruzilhada que é seguir neste caminho de concentração de renda, de exclusão social, ou de avançar”, analisa e reforça a necessidade de o Brasil assumir o seu papel de líder natural do continente. “A saída seria muito mais simples se o Brasil assumisse uma postura que todo mundo espera que o Brasil tenha”, afirma. “O Brasil tem condição, com os recursos que tem, de fazer um grande plano de fomento da sua própria economia, distribuindo renda, estimulando o mercado interno, fomentando a demanda, e ativar a demanda dos outros [países da América Latina] também.”
Ponte
Ao falar sobre a situação de Foz do Iguaçu e da Tríplice Fronteira, Luciano Severo observa que a solução também passaria pela integração econômica regional e a adoção de medidas como o comércio sem o uso do dólar. “O impacto [da crise] é dramático. Tudo nos empurra para a integração, tudo conspira para a integração”, diz, citando o fato de o dólar estar no valor nominal mais alto da história do Brasil como um fator de preocupação “Quem é que vai atravessar a fronteira para comprar?”, questiona, apontando como urgente a criação de instrumentos de cooperação financeira e de instâncias de cooperação macroeconômica, que forcem os países da região a pensar nos demais, no momento de alterar o valor de suas moedas. “O fechamento físico de uma ponte é algo muito forte, muito violento. Mas o fechamento virtual, com a taxa de câmbio alta, é forte também. E a gente não vai resolver esse problema abrindo ponte somente”, pondera.
A série
A websérie Fator Ciência estreou no dia 8 de maio, com uma entrevista com a médica infectologista e professora da UNILA, Flávia Trench. Por conta do período de isolamento social, o programa está em novo formato e foi gravado a distância, por meio da plataforma Zoom. Os capítulos serão divulgados sempre às sextas-feiras, no canal da UNILA no YouTube e também em formato podcast no Spotify.
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