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Pesquisa revisa vida e obra de Gioconda Mussolini, a primeira antropóloga brasileira

Em seu projeto de pesquisa, o também antropólogo Andrea Ciacchi entrevistou ex-alunos e descobriu o paradeiro da tese de doutorado que não chegou a ser defendida por Gioconda
publicado: 28/03/2022 16h00, última modificação: 13/07/2023 16h31

Em 1938, Gioconda Mussolini, neta de imigrantes italianos, terminava seus estudos superiores na recém-criada Universidade de São Paulo para se tornar a primeira antropóloga brasileira. Sua vida e obra são objeto de pesquisa do também antropólogo e docente da UNILA Andrea Ciacchi, que pretende publicar a tese de doutorado que Gioconda não conseguiu defender. 

Há outros “primeiros” na vida de Gioconda: ela foi aluna das primeiras turmas da USP; uma das primeiras estudantes de classe menos abastada em uma universidade; uma das primeiras brasileiras na docência de ensino superior; e pioneira nos estudos da antropologia do mar e da pesca.

O interesse de Ciacchi pela obra de Gioconda Mussolini nasceu no desenvolvimento de uma pesquisa que buscava a reconstrução da linhagem da antropologia do mar e da pesca no Brasil. “Aí comecei a ler mais sobre a trajetória dela. E fiquei bastante surpreso”, diz. “Até agora, juntei um material que ajuda a repensar de forma bem relevante, eu diria, a história da antropologia brasileira.”

Ela é uma das protagonistas de um dos grandes movimentos de mudança do caráter do ensino superior brasileiro

Gioconda não tinha o perfil de quem faria uma graduação, mas a necessidade de encher as salas de aula da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, rejeitada pela elite paulistana que preferia a medicina, engenharia e direito, abriu caminho para sua formação. A jovem de classe média e professora da rede pública é então convidada a estudar e escolhe o curso de Ciências Sociais. “Ela é uma das protagonistas de um dos grandes movimentos de mudança do caráter do ensino superior brasileiro, onde, pela primeira vez, entra uma camada social para qual não havia sido pensada a universidade.”

Os melhores alunos a se formarem na recém-criada USP também se tornaram os primeiros docentes brasileiros que substituíram os estrangeiros que lecionaram para as primeiras turmas. Assim, ela inicia a docência na área das Ciências Sociais, passando depois à Antropologia, e iniciando suas pesquisas de campo em meados dos anos 1940. Nesse caminho, torna-se a primeira professora de Antropologia do Brasil. “Ela faz etnografia numa época em que a etnografia brasileira ainda era muito [verticalizada]. A figura de Gioconda é importante também na sistematização de uma etnografia que eu chamaria hoje de moderna, ou seja, de um encontro de saberes.”

Embora existam poucos documentos sobre como foi desenvolvida sua pesquisa de campo com os pescadores de Ilhabela, Ciacchi não tem dúvidas de que ela não teve dificuldades em lidar com o grupo, mesmo sendo uma mulher nos anos 40. “Eu tenho certeza de que ela entrou nas canoas caiçaras com muita desenvoltura, muita tranquilidade, se aproximando e sendo reconhecida pelos caiçaras como alguém em quem eles podiam confiar”, diz. 

Desafios

Para Ciacchi, a importância de Gioconda Mussolini para a antropologia não pode ser medida apenas por sua produção acadêmica, que não foi muito extensa. “Alguém que fica na história da sua disciplina não pertence só, por exemplo, à história da antropologia. Eu diria que pertence a uma história mais ampla, a uma história intelectual mais ampla”, diz, lembrando que, em 1938, Gioconda também participou do Departamento de Cultura de São Paulo - hoje secretaria -, comandada por Mário de Andrade. “É uma virada impressionante na história da cultura brasileira em termos de políticas públicas”, analisa. “A temática popular, antropológica, a etnográfica passam a ser objeto também de políticas públicas da cidade de São Paulo. E Gioconda participa de tudo isso.”

Outra contribuição foi a “profissionalização” da antropologia brasileira, destaca Ciacchi. Na época, a antropologia norte-americana influenciava a América Latina quase inteiramente. “Gioconda vai na contramão dessa influência culturalista norte-americana. Ela propõe uma antropologia muito mais ligada à sociologia”, conta. 

Como pioneira, diz ele, a antropóloga teve de enfrentar muitos desafios, o maior deles reside em questões de gênero, que a deixaram afastada de posições importantes na academia. “Ela teve a carreira trancada porque era mulher no mundo absolutamente masculino.” Depoimentos de amigos e ex-alunos da antropóloga levam o pesquisador a acreditar que Gioconda foi impedida de defender sua tese de doutorado e, assim, de se tornar catedrática. “A história da tese é a parte mais apaixonante talvez de toda essa história”, conta Ciacchi.

Tese esquecida 

Gioconda, que faleceu em 1969, nunca defendeu sua tese de doutorado – material que o pesquisador só conseguiu encontrar depois de muitos anos de busca. O documento foi digitalizado e está depositado no Instituto de Estudos Brasileiros da USP desde a década de 1970. São mais de 500 páginas datilografadas, que foram digitalizadas e armazenadas em 12 CDs. A tese, agora, está sendo digitada e a ideia é tentar publicá-la.

Para Ciacchi, a importância da publicação desse trabalho está em mostrar a história da antropologia e da intelectual que foi Gioconda Mussolini. “O [texto] mostra um tipo de antropologia que não se fazia naquela época. Uma antropologia muito sociológica”, diz. Seu estudo, aponta o docente, mostra uma rede de sociabilidades e da economia que cercava a pesca e venda de peixes em Ilhabela. “Tem uma forte presença da antropologia econômica que também naquela época era praticamente ausente da antropologia brasileira.”

Para ele, a publicação da tese seria o encerramento de sua pesquisa, que começou em 2005 e que revelou uma trajetória muito singular de Gioconda. “Ela era uma mulher muito independente. Fazia sua pesquisa de campo sozinha no meio de homens em Ilhabela”, aponta. “Tem vários depoimentos sobre dois caracteres opostos, mas talvez complementares na personalidade de Gioconda: era uma mulher absolutamente apaixonada pelo que fazia e [tinha] uma grande angústia pessoal. Mas, de fato, o que faz um antropólogo? Se interessa pela vida dos outros. Eu acho que isso era muito forte [nela]. Uma mistura de solidão, angústia e interesse pela vida humana. Pela vida dos humanos.”