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Cloroquina: veneno ou remédio?

Em entrevista ao Fator Ciência, pesquisador Francisney do Nascimento traça um histórico sobre a cloroquina e explica o processo para um medicamento ser considerado seguro
publicado: 05/06/2020 17h21, última modificação: 28/12/2020 16h04

A cloroquina e a hidroxicloroquina se tornaram temas centrais nos debates acerca da pandemia de Covid-19. De um lado, estão alguns políticos emitindo opiniões favoráveis aos medicamentos e até incentivando o uso dos remédios. Do outro lado, está boa parte da comunidade científica que alega ainda não haver estudos suficientes para comprovar a segurança e eficácia dessas substâncias no tratamento do novo coronavírus, além de questionar a metodologia de algumas pesquisas.

Em meio a esse embate, o aparato científico pode estar perdendo um tempo precioso para estudar outras substâncias que, de fato, poderiam ser alternativas de tratamento para pacientes com Covid-19. Essa é a posição do pesquisador Francisney do Nascimento, doutor em Farmacologia e docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Nascimento foi o entrevistado do quinto episódio da websérie Fator Ciência. “Poderíamos estar avaliando e estudando dezenas de outras substâncias, talvez. Mas no mundo todo está se gastando tempo, dinheiro e recursos humanos para avaliar se a hidroxicloroquina tem os efeitos farmacológicos contra a Covid-19, quando, aparentemente, ele não vai ser o medicamento que vai nos salvar”, explicou. O novo capítulo do Fator Ciência está disponível no canal da UNILA no YouTube e também no Spotify.

Nascimento destacou que a maioria das pesquisas já divulgadas sobre a cloroquina e a hidroxicloroquina foram estudos observacionais, que avaliaram pacientes que já estavam em tratamento e avaliaram se o uso do medicamento teve impacto para o desfecho da doença. “São estudos que têm uma relevância, mas têm algumas limitações. O estudo que será a prova final será um ensaio clínico”, declarou.

 

Planta que originou a cloroquina já era usada pelos incas 

Francisney do Nascimento, doutor em Farmacologia e docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA)Durante a entrevista, Nascimento falou sobre a origem da cloroquina. “É uma substância extraída da planta cinchona, originária do Peru. Os incas já usavam essa planta como tratamento para febre e alguns tipos de dor. Era chamada de 'árvore da febre'. Quando os espanhóis chegam, em pouco tempo descobrem que um dos derivados da cinchona é a quinina, que passa a ser utilizada nas Américas e na Europa”, contou.

Mais tarde, na Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e a Alemanha realizaram pesquisas com quinina em busca de uma molécula que pudesse ser antiparasitária. “Os Estados Unidos encontraram a cloroquina e a usaram por alguns anos. Quando acaba a Guerra e os países voltam a ter contato, soube-se que a Alemanha tinha descoberto a mesma molécula, mas optou por não utilizá-la em humanos porque, em ensaios, percebeu que a substância era tóxica em aves. Então, os dois países descobriram a mesma molécula praticamente ao mesmo tempo”, complementou o pesquisador.

No final da década de 1940, a cloroquina passou a ser usada como tratamento para a malária. Atualmente, sabe-se que a opção mais segura é a hidroxicloroquina, uma pequena modificação que tem a mesma eficácia da cloroquina, com menos efeitos adversos. O medicamento também é indicado para o tratamento de lúpus e algumas doenças reumáticas, sempre com acompanhamento médico.

Em 2002, quando surgiu a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), alguns estudos demonstraram que a hidroxicloroquina possuía ações contra o vírus Sars-Cov. Foi esse fato que, em 2020, levantou o interesse por se estudar os efeitos do medicamento no combate ao Sars-Cov-2, o vírus que leva à Covid-19. “O que define se um medicamento deve ser usado ou não geralmente é a estatística, que é uma ciência exata. Se você não tem uma estatística mostrando que a substância não é superior ao placebo ou a não fazer nada, ela não deveria ser utilizada. Isso explica porque, no momento, nenhum especialista chancelou o tratamento com hidroxicloroquina para a Covid-19. O que temos são autoridades políticas passando por cima das autoridades científicas e expondo a população”, salientou.

 

“Quando a metodologia é bem feita, qualquer resposta está correta. Saber que o resultado é negativo já é importante para não insistir em um tratamento e cometer os mesmos erros”.

O tempo da ciência

O pesquisador Francisney Nascimento explicou, durante a entrevista ao Fator Ciência, que o desenvolvimento de um medicamento é um processo longo, que pode levar de 5 a 15 anos. Os estudos em humanos só podem ser desenvolvidos depois que pesquisas comprovem que a substância não apresentou efeitos tóxicos em células e animais de laboratório. A partir daí, são pelo menos quatro fases de estudos, testes e análises, antes do medicamento ser aprovado e disponibilizado no mercado. “Em média, de cada 5 mil moléculas que na fase animal dá efeito, apenas uma terá efeito em humanos e poderá chegar ao mercado. Até o medicamento passar por todos esses filtros, precisa-se de muito trabalho e de muito investimento”, disse.

Apesar do tempo e dos custos altos, é esse procedimento que garante que a população tenha acesso a medicamentos seguros e eficientes. “Quando a metodologia é bem feita, qualquer resposta está correta. Saber que o resultado é negativo já é importante para não insistir em um tratamento e cometer os mesmos erros”.