Tríplice Fronteira inseriu América do Sul no xadrez da guerra ao terror

Pressão americana por normas antiterrorismo pós-11 de Setembro teve reflexos na região

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Guarulhos

As estimativas variam: há pesquisas que calculam 12 mil, outras falam em 20 mil. Convergem, porém, na afirmação de que a comunidade árabe é um elemento-chave para compreender a Tríplice Fronteira —nome usado como referência à região onde se encontram os territórios de Brasil, Argentina e Paraguai.

A migração, em especial de libaneses, foi intensificada a partir da década de 1950 e ganhou ainda mais fôlego em meados dos anos 1970, quando teve início a guerra civil no Líbano. Homens e mulheres se viram atraídos pela localidade que, na época, recebia fortes incentivos econômicos das ditaduras paraguaia e brasileira —foi nesse período que começou a ser construída a usina hidrelétrica de Itaipu.

"A viabilidade econômica fez a região mais atrativa para os árabes", diz o cientista político e professor da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana) Juan Agulló. Outro fator se somou: a preferência dos libaneses, que têm no comércio uma das principais atividades, por regiões de fronteira.

Ponte da Amizade, na fronteira entre o Brasil e o Paraguai
Ponte da Amizade, na fronteira entre o Brasil e o Paraguai - Paulo Lisboa - 17.mar.20/Folhapress

Entre os muitos eventos que a diáspora árabe na Tríplice Fronteira realizou desde então, um chamou particular atenção. Em novembro de 2001, cerca de 15 mil pessoas reuniram-se em Foz do Iguaçu, no lado brasileiro da fronteira, num ato chamado "Paz sem Fronteiras". Objetivo: contrapor as suspeitas de que a região participasse do financiamento do terrorismo, em especial do grupo islâmico xiita Hezbollah.

Contra o senso comum de que a América do Sul perdera importância estratégica para os Estados Unidos após os atentados de 11 de Setembro, quando a política externa americana se voltou para o Oriente Médio, a região da Tríplice Fronteira foi apontada como origem de remessas de dinheiro para grupos terroristas e entrou no xadrez geopolítico da chamada guerra ao terror.

A região já havia ganhado destaque uma década antes, quando dois atentados contra centros judaicos na Argentina —um em 1992, outro em 1994— deixaram uma centena de mortos. O governo de Carlos Menem, apoiado pelos EUA, apontou que grupos islâmicos baseados na Tríplice Fronteira orquestraram os ataques, ainda que essa versão até hoje não tenha sido confirmada pelas investigações. Foi nessa época, aliás, que os americanos cravaram o nome de "Tríplice Fronteira" (do inglês "tri-border area").

O assédio que prontamente recaiu sobre a comunidade árabe ganhou nova camada após o 11 de Setembro. À procura de regiões sob suspeita de terrorismo, os EUA trouxeram para sua lista a Tríplice Fronteira, que passou a figurar como fonte de preocupação no Country Reports on Terrorism, documento mais importante sobre o tema publicado anualmente pelo Departamento de Estado americano.

Dias após os atentados, o então subsecretário de Defesa dos EUA, Douglas Feith, chegou a ventilar a possibilidade de atacar a região, mesmo não havendo provas de atuação terrorista —a informação só viria a público três anos depois. "A ameaça sempre foi no campo do discurso", diz a pesquisadora da USP Isabelle Somma de Castro, co-organizadora do recém-lançado "Além dos Limites: a Tríplice Fronteira nas Relações Internacionais Contemporâneas" (ed. Alameda, 2021).

Ela explica que, mesmo sem evidência clara e robusta de que membros da comunidade árabe atuem no financiamento ao terrorismo, as suspeitas levantadas inseriram o local na agenda do terrorismo global.

O tema continua aparecendo, ano a ano, em relatórios oficiais americanos. Em tom pejorativo, uma ata de 2014 do Subcomitê de Terrorismo da Câmara dos EUA diz: "Desde os anos 1990, o Hezbollah tem desfrutado de apoio ideológico e financeiro dos libaneses na fronteira tríplice de Argentina, Brasil e Paraguai, região conhecida por armas, drogas, falsificações e tráfico humano".

Os impactos práticos logo começaram a ser sentidos. Nos 20 anos que se seguiram desde o 11 de Setembro, afirma Somma, a região assistiu a uma presença militar ostensiva e a uma ampla campanha para combater contrabando e fraudes fiscais, o que asfixiou o movimento de sacoleiros.

Os EUA também passaram a atuar institucionalmente: em 2002, pouco meses após os atentados, os países da Tríplice Fronteira os convidaram para integrar o fórum de cooperação que recebeu o nome de Grupo 3 + 1, em alusão à parceria dos três Estados locais com as autoridades americanas.

A maior consequência, porém, talvez tenha sido sentida —e institucionalizada— um pouco mais a longo prazo. A pressão dos EUA foi um dos ingredientes para que Brasil, Paraguai e Argentina, mesmo que não tivessem o terrorismo como atividade frequente em seus territórios, esboçassem leis para combatê-lo.

"Havia uma percepção de que o terrorismo é uma ameaça amorfa mesmo em países que não o patrocinam, numa ideia de tolerância zero a riscos", diz o pesquisador Guilherme France, mestre em história pela FGV e autor de "As Origens da Lei Antiterrorismo no Brasil" (ed. Letramento, 2019).

No Paraguai, uma legislação sobre o tema foi adotada em junho de 2010. Na Argentina, pouco depois, em dezembro de 2011. No Brasil, o último da lista, a Lei Antiterrorismo foi sancionada em março de 2016, pela então presidente Dilma Rousseff (PT), sob críticas nacionais e internacionais.

"O lapso temporal acontece porque esse é um processo de longa duração", explica France. Mesmo entre os fatores que colocaram combustível para a aprovação da lei está a sombra do 11 de Setembro. Entre outras coisas, o governo Dilma se viu pressionado pelo Gafi (Grupo de Ação Financeira) —organização intergovernamental inicialmente voltada para questões de lavagem de dinheiro que, após os atentados de 2001, expandiu sua temática para o combate ao financiamento do terrorismo.

Outras tentativas haviam sido feitas. Quatro meses após os atentados nos EUA, o então presidente, Fernando Henrique Cardoso (PSDB), enviou ao Congresso um projeto para substituir a Lei de Segurança Nacional, entulho autoritário da ditadura, que, entre outras coisas, tipificava o crime de terrorismo.

Segundo a proposta, atos de terrorismo praticados "por motivo de facciosismo político ou religioso" seriam passíveis de penas de 8 a 14 anos no caso de resultarem em morte. O conteúdo, adormecido por quase duas décadas no Legislativo, foi retomado em 2021, quando o Congresso finalmente revogou a LSN —não incluiu, porém, os trechos sobre terrorismo, já que uma lei sobre o tema já estava em vigor.

Com uma ausência clara de definição, cada nação desenhou o que considera terrorismo à sua maneira, levando em conta o contexto doméstico e histórico. Em muitos dos casos, como o brasileiro, o instrumento jurídico foi apontado como uma tentativa de criminalizar movimentos sociais e dissidentes políticos, em especial os do campo, como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

Duas décadas depois dos atentados, mesmo com o enfraquecimento da agenda de segurança voltada para o terrorismo externo, as consequências da guerra ao terror foram institucionalizadas em países do sul global —e as críticas tiveram dificuldade de se impor no debate público.

O peso histórico do 11/9, que espraiou um receio mundial em relação a possíveis ameaças terroristas, acrescenta France, favoreceu o "silenciamento da disputa sobre os riscos desse tipo de legislação".

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